quinta-feira, dezembro 20, 2007

Viborazinha

Eu quero a imoralidade
de um amor cheio de doçuras.
Um amor que de tão doce,
amargue o céu de minha boca
quando houver beijos-luz.
E que se perpetue santo
em sua árdua existência
humanamente má.
Eu quero a sordidez
de um amor imaculado.
O amor que me será
a freira jovem e saudável:
onde há beleza sonegada;
o amor que me será
a negra batina do padre:
onde há desejo oculto.
Eu quero a fidelidade
de um amor traiçoeiro.
Um amor violento
nos campos serenos.
Entre as flores virginais,
o desfloramento;
entre a paisagem Divina,
o estupro.
Eu quero chupar, feliz,
o veneno de um amor-víbora.

quarta-feira, novembro 28, 2007

Cão Covarde

Só uma força maior que eu para conseguir me fazer voltar ao meio do mundo de mim. Porque eu ando me arrastando pela sala de casa como se tivesse bolhas de chumbo enraizadas em meus pés. Eu me alimento de um cansaço voluptuoso e vermelho, daquele tipo de cansaço que a gente teme e lamenta e chora, mas, no fundo, é tomado por uma linda e loura vontade de contemplação. Um cansaço amante às escondidas. Digo à disposição: "Largarei o cansaço!", digo ao cansaço: "Largarei, para sempre, a disposição", e assim, homem que sou, na medida do possível, vou mantendo as duas: mulher e amante, no ritmo de quem caminha em direção à forca.

Apenas um terceiro sentimento me fará voltar ao mais que humano em mim, pois essa relação ilícita com o cansaço, essas mentiras contadas à disposição não estão me servindo de abrigo. Preciso urgentemente de um útero quente aonde eu me deite macio e não me arraste - muito menos corra! Preciso urgentemente armar o circo e provocar o choque: descobrir-me nu, no centro de tudo, tendo em mãos uma coisa maciça à qual os homens costumam dar o nome de coragem. E esta matéria peluda e rosnenta que tenho agora, o que é? Um cão? Coragem, seu cão covarde!

Preciso muito de um leve tudo: um leve coração pulsante, uma leve casca dolorida, uma leve queda de escada, um leve amor errante, um leve instante de solidão. Preciso muito de um leve momento habitando as cavernas do dissabor - porque nada é mais saboroso que o legítimo dissabor escorrendo pelo canto da boca frutificando o cítrico. Eu não conheço as palavras modernas que têm o poder de transformar as realidades humanas, não conheço sequer o romantismo exacerbado que salta dos olhos em noite de lua-cheia. Por isso, afirmo: preciso muito de um leve ápice de misturas heterogéneas, aonde o sonho e a realidade se fundirão. Preciso de estrelas ardentes no céu-da-boca.

Essa vontade de cultivar o absurdo - o absurdo como música -, deixando de lado qualquer resquício de cansaço e disposição, é o que eu chamo de coragem. Essa coragem - novo sentimento bruto, força maior que eu, que me fará voltar ao meio do mundo de mim - é o que eu chamo de inspiração.

segunda-feira, novembro 26, 2007

Gruta

Encontro-me nas profundezas
d'algum mar indecifrável.
Nem eu me conheço toda:
parte de mim quer alçar vôo,
parte de mim quer pisar firme.
Sou completa n'alguma coisa
que é gruta de mistérios.
E os animais de mim
são todos quase invisíveis.
Sou sempre duplamente
- possuo duas barrigas,
cada qual com seus filhos-segredos.
Anoiteço bruta
e amanheço límpida;
pareço livre e nua,
mas ainda existe em mim
algum centímetro de medo.
Não tentes me enxergar, cheirar, ouvir,
tatear ou provar de meu dulcíssimo mel:
sou toda a dormência dos sentidos dos homens.

sábado, novembro 24, 2007

Eu Viúva

Acaba agora, amor, esta história grandiosamente interessante, de um charme intenso por ter sido sempre a história de um amor aos pedaços. Nosso amor como um cego que requer todos os cuidados do mundo para não cair do precipício - nosso amor que sempre esteve à beira do precipício. Nosso amor como flor pálida exalando cheiro de qualquer coisa bruta - nosso amor que sempre usou da brutalidade dos fracos, órfãos e mendigos, para se proteger do edema de glote que poderia ser fatal. Nosso amor que jogava xadrez por ter nascido com um sopro no coração.

Eu entendo a vida como algo tão quase programado, que seria em vão a tentativa de evitar o fim - o morcego sempre vem chupar o nosso sangue -, porque meu cepticismo não me deixa acreditar que o que dura, dura mais de uma vida. A nossa eternidade e plenitude tinha de ter algum sentido concreto, como quando pegamos a xícara e bebemos qualquer coisa de dentro dela até a última gota, e depois de alguns minutos, percebemo-nos submetidos à uma forte alergia ao líquido. Nós nos submetemos à esta alergia cruel e só agora fomos capazes de parar de beber deste amor - amor acessível e deliciosamente ressacado - amor como cerveja.

As horas vão passando e eu estou ficando com o mal cheiro deste amor-defunto etranhado em minha pele, e me falta a grande coragem de sepultar de vez esta história. Eu não desejo sequer a lembrança desta coisa quase maciça que, um dia, teve vida, embora eu saiba que nos próximos dias, cobrirei-me com um negro véu - tal qual uma viuvinha - e chorarei ajoelhada diante do seu túmulo. Mas isto não é uma carta de despedida, isto é, sem dúvida, uma carta de exorcismo de um sentimento que não pode mais existir - ou dos brevíssimos e suados fatos nos quais esse sentimento se perpetuou em sua árdua existência. Somos todos filhos da existência de um amor breve e suado.

Querido, escuta-te, observa-te, alimenta-te de tua morte, pois é em tua morte que vais renascer, como a segunda tentativa de fecundação de uma mãe que sofreu um aborto. Podes crer, amor: a vida é mística demais em seu cepticismo, e ela nos pregará peças enquanto estivermos respirando. Respira, querido, uma derradeira vez, dentro de mim! Pois a nossa história acaba agora: no instante em que esse pedaço obtuso de coisa mágica se incorpora ao pedaço obscuro de coisa trágica.

terça-feira, novembro 06, 2007

Eclipse

Estou sentindo
uma extraordinária vontade
de me comer,
parte por parte.
Beber-me até a última
gota de sangue;
devorar-me até não restar
sequer a sombra de minhas vísceras
- como um astro some
quando há eclipse. serás
o observador de meu desaparecimento.
Uma vontade não de morte,
mas da fração de tempo que há
entre a vida e a morte,
aquele nada
que não é aborto
nem é fecundação
- como quando o mágico do circo
faz sumir a mulher no caixote.
Quero conhecer de perto
este absurdo que é
devolver-se ao próprio ventre,
como se antes nada existisse
e como se o depois fosse um outro mundo,
longe e inatingível.
Estou sentindo
uma extraordinária vontade
de me tornar miúda, tão miúda,
a ponto de ser aquele pedaço
de coisa imperceptível
- nada de mágico, nada de trágico,
apenas a beleza da não-existência.
Devorar-me tanto, devorar-me tão completamente,
a ponto de me tornar
o meu próprio conteúdo gástrico.
E depois, só depois
- já uma outra mulher -,
vomitar-me toda,
em noite de lua-cheia,
uivando aos homens:
"Cheguei"!

domingo, outubro 28, 2007

A Carta

Escrevo-te como quem vomita. Perdoa-me qualquer palavra chula, tudo aqui escrito será involuntário. As horas vão passando e eu muito mal sinto beleza em mim - Perdoa-me também o cheiro podre, não conseguirei escrever cheiroso porque por dentro sou quase cadáver, e por fora, estás vendo, sou carne-viva. Estou seca e ácida, poderei te causar a repulsa e o afastamento, mas serei fiel aos meus instantes de fome e às minhas obscuras sílabas. Direi-te a verdade? Sim, somente ela tem sido amiga, chegando a ameaçar tudo o que não tem, no mínimo, leve coração pulsante. Querido, conhece-me como conheces a ti, observa-me nestas palavras e escuta: preciso te dizer que há mistérios por revelar; eu sou aquele caixote, no porão, que nunca abriste. Abre-me, querido, esta flor murcha que sou quer te falar: segredos.

Minha beleza nunca me deixou forte; não é abrigo, é estar nua na vitrine, exposta à tudo. Minha beleza não é bonita, é dia revertido em escuridão, a beleza de como as coisas são: feias e incompatíveis. Lembra-te: escrevo-te como revelação. O meu rosto não é mais aquele rosto, e o meu corpo anda numa transparência que Deus me acuda: olhando-me se vê minh'alma. As pessoas me olham de relance, pois o sangue em meu espírito não permite que elas pousem seus olhares sobre mim por mais de pouquíssimos segundos. É tudo de uma dor medonha, que eu me vivo e me dano, me vivo e me dano, como em círculos. Estou tonta de tanto girar; sou girassol que nasceu na floresta sem luz. Querido, como és belo perto de mim! Como és belo em tua sanidade! Não espero de ti qualquer resposta; qualquer resposta tua - por mais que negues as minhas verdades para que eu fique tranqüila - será absurdamente maior e mais bonita que minhas palavras, apenas confirmando quem estou te falando (aqui será 'quem estou te falando' e não 'o que estou te falando', pois não falo sobre mim, não falo de mim, simplismente falo eu, como quem se despe muda). Além de tudo, temo mais absurdos. Portanto não respondas, preciso falar sozinha, em tom de confissão, como em cima de um divã - desculpa-me, mas preciso urgentemente te descer à condição de espelho para que me escutes sem te pronunciares e para que, através de ti, eu me (re)conheça toda: serás meu reflexo.

Jamais faria mal à alguém, tu sabes um pouco de mim, mas terminei por fazer um mal tremendo à minha pessoa. Não foi de propósito, juro-te pelos meus restos, foi por descuido, por um fio tênue que separa o fel necessário do fel ordinário. Amei-me tanto, querido, mas me despetalei a tal ponto que agora só me resta a loucura de guerra. Minhas guerras sempre foram internas e isso me custa muito sofrer. Amei-te muito também - foste meu homem, meu amante, meu filho, meu irmão e herói; foste um tudo-junto e abrir mão do teu amor foi como jogar-me à escuridão. Joguei-me para conhecer de perto a agonia de me saber eu. Foste alguém que morou em minha barriga por muito tempo, mas tive de te parir, te libertar - confesso que nesta hora pensei em mim, pois te libertando estaria me libertando também. Agora estou livre de ti, e para me ter por completo é necessário que eu não te tenha, nem pela metade.

As horas parecem voar, tudo passa depressa demais e eu sinto que está chegando o momento da grande notícia. Não, pensando melhor, ainda não, vais ter que esperar mais um pouco, talvez eu esteja mesmo querendo te preparar para o mergulho: o grande mergulho em mim (lembrando-te que eu te escrevo para mim; tornei-me profundamente egoísta depois do choque). Ah, querido, se soubesses o bem que faz se conhecer assim, escreverias algo sobre ti à qualquer pessoa, logo, deixando-te escorrer aos litros. Quando escrevo, ponho-me a rogar por minha própria ajuda; escrever-te talvez esteja sendo uma forma d'eu desistir do que, ultimamente, tenho planejado: horrores. Mas até agora não desisti de nada, sou só uma fruta velha que nunca foi colhida - apodreceu no pé - e pensar nisso, agora, dá-me ânsias de vômito (e como te escrevo como quem vomita, prefiro dizer que pensar nisso, agora, dá-me ânsias de escrita. Que fazer? Vomitar-te).

Deus, estou perdendo a coragem de falar. Aproveitarei este momento, então, para te contar minhas empreitadas: andei sonhando demais. Não falo do sonhar que todos sonham, mas do sonhar na prática, infalível e cruel. Aquele sonhar que está no pegar de objetos, no abrir de bocas, nos goles de gim. O sonhar no presente do indicativo, árido e sertanejo: o fazer como música. Num desses sonhos, confesso-te, arranhei-me toda. Sempre tive o coração vulgar, mais vulgar que o corpo, mas inventei de fazer o corpo ser tão vulgar quanto o coração. Resultado: solidão. Fui bruta uma única vez, por experiência de exacerbação, queria me livrar do que impuseram às mulheres e terminei por me machucar. Acredito que os homens - não adianta - os homens nunca nos entenderão. Até tu, querido, não tentes me entender, os homens são burros como o que, e a força das mulheres se perde quando alguém as entende. Prefiro assim. Pois bem, fui brutalmente ferida por alguém que me quis para ficar em sua estante. Alma como troféu, Deus me livre, nunca mais! Desisto, hoje, de tudo isso, pois não nasci para ser aquilo que eu não sou. Já sou mulher pálida e ofendida demais pela vida, pelas minhas verdades, por mim mesma, não me deixarei ofender mais por ninguém que não eu. Não, nem eu mesma poderei mais me ofender, isso faz parte da grande notícia, embora não a seja por completo. Agora te direi, agora, criei coragem como quem, subitamente, alucina-se:

Adeus. Perdoa-me, mas a grande notícia é este meu adeus infame. Somente este adeus; se esperavas algo maior que um adeus, perdeste teu tempo me lendo. Tornei-me fria assim, toda imensidão fica pequena em minhas mãos, embora coisas miúdas me causem monstruosas cóleras. Adeus, querido, adeus, adeus, adeus. Terminarei de abandonar-me, quero que saibas que sofro de amor por mim - minha primeira metade ama minha segunda metade, e minha segunda metade não ama minha primeira metade -, a culpada de tudo sou eu, não te esqueças disso, eu, eu, eu, como fui a vida pós-choque inteira: sempre eu, sempre egoísta. Tratarei de enfiar uma faca em meu peito, num ato alérgico e egocêntrico, quero chamar atenção de mim. Talvez de Deus. Mas tenho de te dizer adeus logo, antes que eu morra e falte algum adeus. Tenho de te dizer todos em uníssono: ADEUS, ADEUS! Que fiques com os anjos porque vou partir como quem apenas sabe que vai - para onde pouco importa. Preciso ir com todas as minhas forças restantes, preciso morrer. Já que em vida, estive morta, creio que morta, estarei viva. E como passarinho que canta alto e cruel pela manhã, te direi mais uma vez: adeus. Vou-me, amargamente, deixando-te - como alguém que trata só dos seus interesses - a minha trágica verdade.

sábado, outubro 27, 2007

Altar

Não sei se a puta é
inocente ou culpada.
A única coisa que sei
é que a puta,
em sua inexatidão,
é toda mistério profundo
e vítima de suas próprias feras:
a menina que entra na selva,
segue os rugidos que escuta
e morre devorada pelo bicho.
Depois, só depois, descobre que
entrou na selva do seu umbigo,
seguiu os seus próprios rugidos
e morreu devorada pelo bicho que é ela.
Não falo da puta que se vende
para pagar os remédios da mãe doente.
Falo da que se dá de graça,
co'a boca orgulhosa pintada de risos,
mas com uma tristeza amarga no olhar.
Não falo da puta, coitada,
que é produto de um meio.
Falo da puta, coitada,
que já nasceu aberta em flor:
escravinha da própria lascívia,
objetinho do próprio prazer,
a puta doce que se come toda
quando há lua-cheia
- Falo da puta que não crê em Deus,
a puta que não carece Dele,
que sofre e goza num mesmo ritmo,
a menina que destoa o cântico
do coral da igrejinha.
E não da que clama aos céus
melhores condições de vida:
a puta profissional que se torna evangélica.
Não falo da puta que se fantasia de carnaval,
falsa loura, mendiga e difamada;
falo da puta que é o próprio carnaval
e escuta o lobo uivar dentro do seu ouvido,
sozinha
- Falo da puta sozinha,
que prefere não ter ninguém
a ter uma só pessoa. A puta
que cai nas próprias armadilhas.
A puta adolescente
que não conhece o mundo,
a puta criança
que chupa o dedo,
a puta gostosa em sua miséria.
A puta quase invisível,
quase imperceptível,
que é puta por descuido,
que é puta por um fio.
A puta que é santa.

sexta-feira, outubro 26, 2007

Madalena

Vês aonde cheguei por ti?
Agora entrego-me à brutalidade
de um cão faminto.
O caminho que escolhi
não foi o mesmo que percorri,
e hoje sou tudo o que eu neguei.
Às ruínas d'alma me lançaste,
com essa tua língua áspera me empurraste
para o mais que humano de mim.
Conheci o líquido da verdade
que tanto me ofereceram
e eu nunca bebi.
Igualei-me ao sem escrúpulos,
fundei outra religião poética,
mendiguei um bocado de amor.
Maldita paixão a dos desgarrados,
dos devoradores, dos emancipados,
dos homens sem lei.
Malditas coxas das quase-mulatas sestrosas,
flores da lascívia cheirosa,
santas no altar dos sem-deus.
Eu renasci nos teus precipícios,
menina de curvas e abismos,
Oh, para sempre amada.
Agora que me despi
e desci à condição de réu,
agora que falo a língua dos homens,
espero, qual Cristo,
a crucificação.

sexta-feira, outubro 19, 2007

Náufraga

Quando somos meninas, comemos as nossas próprias entranhas. O alimento sagrado é a flor do sexo: comestível e carnívora - algo como devorar o que nos devora. Ou melhor: devorar-nos com graça. Oh deus, ser menina é como dar valor à matéria e ganhar um presente da tia falida numa linda embalagem - embrulhado, faz com que nossos olhos saltem e cintilem em rodopios, num balé furtacor, mas desempacotado, faz com que conheçamos a desgraça de se saber a verdade. Já fui menina, eu sei. Ser menina é como nascer da própria morte; uma aventura lúdica que tanto pode ter qualquer coisa de saboroso quanto pode ter qualquer coisa de gosto de jiló.
Despetalar-me talvez tenha sido o acontecimento mais interrogativo de minha vida - era uma pressa em crescer que deus me acuda! Uma vontade de penetrar e me perder em labirintos audaciosos. Tudo que era súbito era bom e bonito, mas eu não podia saltar para fora de mim porque o muro era muito alto. Como se minha mãe, sabendo ter parido alguém cruelmente transgressor, aumentasse a quantidade de grades em volta da casa para que eu jamais pudesse fugir (agora, só agora, eu entendo o quanto é difícil para uma pássara soltar seus passarinhos sabendo que o céu fica escuro quando anoitece e os homens são maus). Fugir para mim era pisar a calçada; transgredir para minha mãe era a burrice de dar a cara à tapa.
Mas deixemos de enrolação e cheguemos ao ponto máximo de minha história; ao clímax de minha existência: Numa tarde quente eu menti para minha mãe (coisas de menina católica por formação mas que, embora batizada, recusou a primeira comunhão, machucando os velhos parentes). Eu menti com medo de ser desmascarada mas, cá pra nós, isso jamais me impediu de voar. Eu menti, eu menti, eu menti, EU MENTI. E mentiria tantas vezes se assim me sentisse consertando alguma parte torta na humanidade.
A casa de praia era grande e bonita, tinha as divisórias de vidro e quadros de Frida Kahlo na parede - Mas que coincidência! Frida Kahlo, o símbolo da revolução sexual feminina, assistindo o meu bater de asas, o meu vôo por cinco minutos e em seguida a minha queda dura e fria. A realidade era o bicho que eu repugnava, era a parte indesejável e cruel do meu despetalar-me. Bebi muito, a ponto d'eu conhecer de perto a coragem que a embriaguez nos dá, aquela coragem de poucos, aquela coragem que não se tem e se tem quando se tem 15 anos. Bendita vodca com guaraná.
Os olhos do rapaz, o dono da casa, tinham um brilho esquisito. Um brilho de quem perdeu alguma coisa, ou mesmo nunca encontrou e vive numa eterna e inválida busca, sempre o mesmo vazio. Parecia que ele tinha mandado buscar um verde igualzinho ao verde do mar que dali a gente via, para pôr nos olhos e me impressionar. E eu pensar "Nossa! que maravilha: ele tem o oceano nos olhos". Deus, que dia extremamente tropical! O calor não tinha mais aonde caber, era muito pouco corpo para tanto calor. O rapaz me olhava feroz, um lobo, e eu percebi o que ele estava querendo na hora em que deitamos na grama e ficamos morenos. O beijo dele que não terminava nunca dizia-me encantadores absurdos. Depois as horas em que ele passava me olhando numa mudez espantosa, e eu me fingindo de cega - sempre achei que os cegos, profetas e poetas enxergam mais e melhor que as outras espécies de gente. Da grama para o andar de cima foi um pulo. Quanto céu tinha aquele rapaz que eu muito pouco conhecia, e quanto poder sobre mim exercia o desconhecido. Mas eu sequer imaginava que não tinha escolha quando, já deitados, ele por cima, deixei cair a minha sôfrega flor do sexo em suas mãos de macho audaz.
Eu habitava novas terras, descobria novos caminhos. Eu ouvia um mundo gritar por socorro e tentava ajudar esse mundo doente e velho, sem saber que minha ajuda era, de todas as ajudas, a mais vã. Foi como correr tanto a ponto de cavar buraco na terra e afundar-me toda. Que desperdício. Eu podia sentir uma multidão de mulheres me habitar, uma multidão de Fridas Kahlo fazer seu trabalho em mim. Mas eu não sabia que doía tanto essa tal de revolução.
Esta cópula não representou coisa alguma que não a vontade de ser guerreira e forte. Uma vontade, apenas, pois para ser guerreira e forte, eu não sabia, precisa-se conhecer o mundo como conhecemos o nosso corpo. Assumo: eu colaborei para o mundo continuar velho e preconceituoso, eu lutei contra e ao mesmo tempo contribuí com a glória masculina quando abri portas e janelas, antes do galo cantar, para a falsa paixão. Hoje apenas sei que foi neste dia ácido, de biquíne azul-turqueza, sob um sol medonho, que eu conheci o lado náufrago de se saber mulher.

terça-feira, outubro 16, 2007

Clandestino

O que habita o profeta
é o mesmo que habita o cego
e o poeta

- Essa capacidade de perceber as coisas
e não conhecê-las.
Essa infinita ligação com o incosciente.
Esse grito mudo.
Ser um expectador no cio,
como estar do lado de fora de dentro das coisas
e penetrar, clandestinamente,
nos labirintos d'alma.
Saber-se devorado pelo olhar de um cão
e não compreender a fome.
Esse subitamente que encarna
e nos faz, primeiramente, ser a notícia,
depois espalhá-la
num jornal que é todo vermelho-sangue.
Essa coragem de apalpar o desconhecido!
E essa intuição,
essa intuição material
que tudo explica
e nada entende.

Eu sou o ser que nada é.
A parte disso,
tudo enxergo, adivinho e sinto.

sexta-feira, outubro 05, 2007

O Dilema

São maliciosas as coisas do mundo.
Esse mundo que abre pernas e seios
para o desconhecido.
Desconheço a parte de mundo
que não tenha um sopro bandido.
Mas ele não tem culpa
- é o coração que já nasceu enfermo.
Quero penetrar em cada astúcia mundana.
O absurdo como música: eis o meu lema!
Essa íntima matemática que cria
mas não resolve o problema.
O mundo é um prato de sopa
- enquanto os homens são quem o come,
eu sou a mosca morta de fome.
E desejo ser exatamente a fração de segundo
em que esse pedaço obtuso de coisa mágica
incorpora-se ao pedaço obscuro de coisa trágica.
Jogar-me nua ao não entendimento - eis o esquema!
E não matar-me e morrer-me por um dilema.

segunda-feira, outubro 01, 2007

Ser E Não Ser

Tu és o bem que eu não quero;
parte feliz em que eu me desespero.
És fera oculta no jardim de flores doces.
Tu és as florestas em que eu me ardo,
que tanto pode ter qualquer coisa de belo,
quanto pode ter qualquer coisa de um mal amargo.

Tu és a sórdida fraqueza humana;
aquele momento em que resgatamos
as entranhas;
o momento em que pensamos:
- Meu Deus! não há porque haver façanhas:
é tudo livre e grande: oh, vida tamanha!

Tu és o homem desarmado,
que pode ser a virtude e o pecado.
És o dom de existir e só.
E eu me dano e vivo - não sei como -
na angústia de não saber que papel exerço
que não o de ser e não ser amado.

domingo, setembro 30, 2007

Qualquer Coisa

Olhei tua barriga
- uma vontade de caber ali dentro...
Quero ser o teu sofrimento;
desejo ser o teu parto.
Quando pego teu revólver e me mato,
é na esperança de ter teu afago.
Um afago bandido, eu sei,
mas ainda assim um afago
- de braços mornos, passos largos.
Eu quero ser o que te fere e cansa,
mas que não abandonas nunca - esta criança!
que, no fundo, quer teu sorriso
como abrigo
e tua lágrima
como descoberta.
Eu quero ser tua ferida aberta.
Eu quero ser teu filho indo embora,
batendo a porta, desajustando a casa;
morando longe, num lugar cheirando a lixo.
Eu quero ser teu bicho
- teu lobo sedento e pálido.
Mas se não quiseres ser, assim,
meu namorado,
eu posso ser, assim,
irmã abandonada e nua.
Eu faço qualquer coisa
para ter em mim
qualquer coisa de tua.

segunda-feira, setembro 24, 2007

Quase Nada

Quase nada cabe em mim.
Não fosse a pequenez
de minha esperança,
nada caberia. Mesmo.


Eu sou apenas a criança feia
debruçada na janela
assistindo a imensidão do mundo
- imensamente grande para ela!
Com seu corpo pequenino,
suas mãos trêmulas,
a criança emenda um balé de espera.
E vive somente para que,
um dia, talvez,
alguma coisa consiga adentrá-la
- nem que seja o olhar de um cão.
E ela cai e levanta;
se perde nos labirintos d'alma
e se encontra.
E morde os dedos,
fuma um cigarro,
corre com os lobos em círculos,
luta, fere, cansa
- mas ainda não cresce, não adianta.
E ela tenta...
C'os olhos cheios de dor
ela agüenta!
Com o sertão rachando a garganta
ela suporta!
Se rasga e se dana,
chora cachoeiras esta criança.
De repente, de tanta briga,
ela estica.
Elástica e cruel ela cresce
e torna-se uma coisa assim absurda:
maior que a fome,
maior que o amor,
maior que Deus.
E o mundo, em sua palma da mão,
não passa de uma bolinha de gude.
Eu sou apenas a criança feia
que cresceu.


Não caibo em quase nada.
Não fosse a imensidão
de minha poesia,
em nada eu caberia. Mesmo.

terça-feira, setembro 18, 2007

Instante de Morte

Morde-me o instante
em que eu te vejo beijar
o ventre de outra mulher;
os pés; os cabelos; os danos
causados por essa mulher
- como se a felicidade fosse
jogar-se nos abismos
dessa mulher.
Crava-me as unhas o instante
em que eu te vejo chorar
a traição de outra mulher;
com teu coração
numa ligeirice harmônica
por outra mulher;
transferindo o mundo
para as feridas abertas
por essa mulher.
Aborta-me um pedaço o instante
em que eu te vejo sendo levado
pela mão de outra mulher.
Uma mulher talvez igual a mim
- bem pálida; meio flácida;
um tanto ácida; uma mulher
risonha; com uma graça
de onde há beleza oculta;
forte; grávida de si -,
talvez não.
Soca-me o instante
em que eu te vejo contemplar
a existência de outra mulher.
Uma mulher talvez igual a mim
- talvez igual a todas -,
que mora Perto Do Coração Selvagem
e não sou eu.
Mata-me o instante que me grita
que não basta eu ser eu
nesta vida.

domingo, setembro 02, 2007

A Coisa (ou Os Meus Dozes Anos)

Agora eu finjo que os papéis estão trocados
- És tu a princesa presa
na torre mais alta da carne camuflada.
Não. Percebo que o tempo não cura nada.
Qual Deus capaz de destruir o sonho
de uma criança afobada?
Esse Deus de quatro séculos
não é maior do que eu posso ser.
Enxergo o desejo como uma coisa maciça e violenta
que levo nas mãos
- Posso embalá-la num sono profundo e longo,
mas não posso nunca, jamais, matá-la.
Agora eu finjo que persigo o homem grande
que me perseguia
- Tu, tu fantasiado
de tudo que eu sempre quis ser
e agora finjo que sou.
Escuta, querido, a matemática está certa
quando diz que a ordem dos fatores
não altera o resultado
- Fumo para me proteger,
bebo para me enganar.
A verdade é que eu não matei os meus doze anos;
os meus doze anos é que estão me matando.

quinta-feira, agosto 30, 2007

Surpresa

Quando não se morre
um pouquinho a cada dia,
um rosto é somente um rosto
- humanamente feliz e belo!
Cara crua cor-de-rosa-chá,
explícita e vulgar.
Quando não se morre
um pouquinho a cada dia,
um dia é somente um dia,
e as noites selvagens
passam despercebidas pelos sentidos
- não se sente estrelas e lua-cheia
ardentes no céu da boca.
Não morrer um pouquinho a cada dia
é como dormir de luz acesa;
fumar e não tragar;
vencer tanto, vencer tão completamente,
a ponto de só restar
a agonia de se ter vencido sempre.
Não morrer um pouquinho a cada dia
é como o apego à rima;
é como assistir de camarote
essa orgia alucinante que é a vida;
é como nunca ter dado um tiro na boca;
é como dizer não suportar o mundo,
e suportar!
Quando não se morre
um pouquinho a cada dia,
um estômago é somente um estômago
- livre das borboletas e dos buraquinhos -
e a vida não é vida,
pois não haveria o novamente fecundar
se não houvesse o antes abortar
.



Para Duda Borba.

segunda-feira, agosto 27, 2007

Noite Primaveril

É hoje que Marte despertará junto a Lua, e nós dois
- eu e você - iremos emendar um balé esquisito cheio
de estrelas. Uma dança clássica em cima das telhas
bambas de um teto selvagem.
É hoje, amor, prepare-se. Como nos tempos da arrogância
terna; como nos tempos da loucura sã; como nos
tempos da cólera benigna.


É hoje que Marte despertará em silêncio - somos os
únicos a saber. Um planeta Marte cheio de dor. Uma dor
de quem sabe que a noite é curta. Uma noite que estenderá
os braços para que possamos nos sentir abraçados. E um
abraço, amor, que será o nosso balé esquisito cheio de estrelas;
a nossa dança clássica em cima das telhas bambas de um
teto selvagem.


É hoje que Marte irá beijar a boca da Lua, e nós dois -
eu e você - iremos testemunhar o coito alucinante.
Esta história de amor entre a Lua e Marte, como eu e
você, esse cheiro de violência sutil. Nesta noite primaveril
em que o céu expulsará todos os seus habitantes para que
o Grande Óvulo Lunar seja fecundado. Nesta noite em que
o universo se tornará um imenso espelho para que nós dois,
dançando em rodopios brilhantes debaixo da paixão de Deus,
possamos descobrir que a paixão de Deus, amor, é a
paixão dos homens.

sábado, agosto 25, 2007

(Des)Conheço

Um desconhecido tocou meu íntimo.
Estranhei este corpo estranho,
mas entranhei-me deste corpo,
e entranho-me.

Não invadi sua casa,
não vasculhei suas gavetas,
não arrumei seu armário,
não acertei seu relógio.
Tudo para que o desconhecido
fosse sempre assim,
vulto inexato,
aos meus olhos,
de quem somente se permite
ser explorado.
- Eu nunca exploro.

O desconhecido morou em mim.
E depois de algum tempo
sendo habitada,
pude perceber que
quanto mais eu o desconhecia,
mais eu me reconhecia
e me amava.

domingo, agosto 19, 2007

Um Só

Quando se ama,
se esquece e se abandona;
se incendeia e se anoitece
em chamas.
Se escurece à luz do dia,
quando se ama.

Quando se ama,
não se vive como os outros
- Amar é morrer ao nascer;
murchar ao brotar;
desabar ao erguer.
Se queima os resquícios
que provam que, um dia,
se viveu,
quando se ama.

Quando se ama,
se rasga e se deleta,
levando junto certidão de nascimento,
identidade, atestado de óbito.
- O que era pouco, torna-se nada;
e o que era nada, torna-se a ausência de tudo,
inclusive de nada.

Porque quando se ama,
se inexiste
em quaisquer corpo e lugar
que não a pessoa amada.

segunda-feira, agosto 13, 2007

Sem Fim

No dia em que o Menino nasceu em mim,
eu conheci o amor dos loucos.
O amor desprovido de licenças e gentilezas.
O amor que não fala - grita.
O amor que não pede - implora.
Quando ele entrou em mim
pela primeira vez,
ouvi aplausos, vaias, pessoas murmurando
sílabas desconhecidas aos meus ouvidos.
Era como se o mundo estivesse aqui comigo,
todo o mundo - com suas guerras e seus apelos.
E na verdade, não era o Menino entrando em mim,
era uma multidão de Meninos querendo cessar,
querendo consumar aquela loucura.
Eu nunca senti desejo por ele
- o amor que me habitava
era tão imenso, tão imenso,
que não sobrava espaço para o desejo.
Digo, inclusive, que o amor era maior que eu,
e que não cabia em mim
- escapava-me por entre os dedos.
Um olhar do Menino
era a luta livre dentro dos meus órgãos.
Uma luta sem final,
por isso mesmo, sem vencedor.
Era o ato, o verbo lutar, apenas.
Quando o Menino passava a língua no meu pescoço,
eu sentia a ponta do meu dedo do pé
sofrer as consequências.
E eram tantas consequências, Meu Deus,
que andar eu não podia mais.
E o tempo valsava quando eu estava com o Menino!,
e a Terra toda era uma criança,
e o medo não se instalava em mim.
Eu conheci o amor dos loucos,
o amor dos roucos,
o amor dos pálidos.
O menino estava sempre perto,
sempre ao meu alcance,
sempre dando o rosto pra eu bater,
sempre dando o corpo pra eu brincar,
sempre dando a carne pra eu morder.
O amor pelo Menino é
um bicho feroz que devora tudo que vê pela frente.
Sobe as escadas,
bagunça o quarto,
incendeia a casa.
É o amor que os pais não querem para os filhos;
o amor não compreendido
pelas pessoas
que não eu e o Menino;
o amor eternamente estudado pelos psiquiatras.
Quando eu morrer, provavelmente,
o amor não vai comigo.
Porque o amor é o inimigo
que fere, sangra, despetala.
O amor dos loucos nasce,
o amor dos loucos mata,
mas não morre nunca
este meu amor pelo Menino.

terça-feira, agosto 07, 2007

Sem Tempo

O tempo, hoje,
não passa de um homem
magro e nu,
solto - e perdido -
na imensidão
que cada coisa carrega.
O tempo, hoje,
está quase morrendo,
pois esqueceu de tomar
os remédios
que o médico receitou.
Ele - o tempo! - está cansado,
desconfortável,
sem tempo para a contemplação.
Ele, hoje,
não vive - apenas vegeta -
e não tem mais
os poderes de transformação.
O tempo não é mais aquele tempo,
gordo e saudável,
dos tempos dos meus avós.
Ele agora está magro e nu,
não corre - voa -
por isso mesmo
não derrama mais o suor sagrado
que outrora
fazia brotar flores
no asfalto.

domingo, agosto 05, 2007

A Descoberta

Seco o lar.
E assim já começo a descobrir
o que mais dói em mim
- O porta-retrato com a fotografia
de um pai imortal que sempre morreu,
ou a poltrona cheia de um corpo
com um coração que nunca bateu.

quinta-feira, agosto 02, 2007

O Segredo

Eu sou superficial.
Não amo os homens,
não sinto saudade da família,
não tenho compaixão
pelos que estão cheios de ausência.
Eu sou superficial.
Vês esta carne
coberta de pele branca?
Sou isto, apenas isto,
e dentro possuo um vácuo,
um espaço de tempo que não existe,
que pode-se chamar também
de Nada.
Eu sou superficial.
Sou como o que dá pra ver
quando sentamos numa pedra
e observamos um rio
- superfície.
Não possuo planetas,
peixes, baratas, ideologias,
terras, planaltos, asfaltos, populações
dentro de mim.
Eu não carrego essas imensidões
dentro de mim.
Eu não sinto dor,
eu não sinto frio,
eu não me desespero,
eu não conheço o arrepio.
Eu sou superficial.
Eu sou a exatidão do ser,
eu sou a compreensão do estar.
Mas na minha mochila eu levo uma coisa,
uma raridade,
um segredo
- Eu consigo enxergar
no escuro.

quarta-feira, agosto 01, 2007

Eu Feto

Silenciosamente,
sinto saudade do ventre
da minha mãe.
Onde eu permanecia
silenciosa;
onde tudo era único,
ímpar, divino, mágico.
As suas paredes uterinas
me afastavam do mal
do mundo.
E eu sentia, lá de dentro,
a boca da minha mãe
se abrir em flor.
No ventre da minha mãe,
o tempo valsava,
custava a passar,
sempre sonolento e sonhador
- o tempo dentro da barriga da minha mãe,
era um templo noturno
aonde o amor não tinha descanso.
Eu não exercia papel algum
que não o de existir
para amar e ser amado.
Como era bom
ser feto luzindo
no interior feminino!
Mas tamanha era a minha vontade
de nascer mulher,
bravia e quente,
para ganhar o tempo
que eu pensava ter perdido.
O parto não doeu,
apenas cortou-me em pedaços.
E quando, enfim, povoei as ruas
- e todas as avenidas que hoje eu abraço -
pude perceber que o melhor mesmo
era ter ficado apenas
imaginando o lado de fora.
Imenso é o sofrimento
desse eu que não se conhece mais,
desse eu desprotegido e fugaz.
Hoje, silenciosamente,
sinto saudade da escuridão do ventre
da minha mãe
- A minha mãe que sou eu,
e esse ventre, esse glorioso ventre
que é meu.

terça-feira, julho 31, 2007

Música

Não era o menino
com seu violão.
Era a farinha, o trigo, o leite
- o pão;
era o alimento sagrado
desmistificando o pecado
nuns olhos fundos,
corpo salgado.

Não era o menino
com sua canção.
Era a boca aberta do meu coração
a esperar qualquer coisa
que se parecece com arrepio;
ou a falsa esperança
de não sonhar mais em vão
- desafio.

Não era o menino
à luz da lua.
Éramos dois (muitos)
desnudando a rua
e deixando a verdade entrar.
Para depois,
distantes,
termos em quê acreditar.



Para Dyogo.

quarta-feira, julho 18, 2007

Licença Poética

Deixe-me errar
- O poema sempre chega
quando não há o esperar.

Arromba a porta,
invade a alma,
recicla a carne,
põe-se a rogar.

É linda! a sua
autoridade...
Eu sempre lhe tenho
licença a dar.

segunda-feira, julho 16, 2007

(In)Válida

Sou a mulher que arrancou
os próprios seios.
Sou a mulher que se mutilou.
A mulher que agora
habita alma sem corpo
e que nunca mais poderá
amar alguém.

O amor é uma fogueira
- destino exclusivo das bruxas más.
Sou a mulher que abandonou
feitiçarias e carnavais;
a mulher que não risca mais os fósforos;
a mulher que não se incendeia mais.

Sou agora a mulher mais fraca,
que jogou fora útero e ovários;
a mulher que matou os filhos,
o marido, os amantes e os empregados.
Sou a mulher que expulsou a carne
e explodiu a casa.

Sou a mulher que queimou seu sexo,
sua certidão de nascimento,
seu nome de casada.
Sou a mulher que de mulher
não tem mais nada,
a não ser o direito de ser incompleta:
a invalidez revolucionária.

sexta-feira, julho 13, 2007

Mentiras

Não creias em mim,
pois vivo falando
palavras não ditas;
vivo calando
palavras explícitas.

Não creias em mim,
pois quando choro
é tanto o gozar!;
quando oro
é querendo me profanar.

Quando digo que amo,
não creias em mim,
pois o afago
é o meu odiar.

quarta-feira, julho 11, 2007

(In)Vencibilidade

Encher-se de coragem
- eis a meta!
Vencer o absurdo
- eis a merda!

Ser Poeta (ou Natureza Poética)

Seremos poetas:
Domesticaremos os leões
Que vivem nas sombras
Das entranhas
Depois lhes serviremos
De sagrado alimento
Em nome da Alta Voz
Da natureza.

quinta-feira, julho 05, 2007

O Gato

O cigarro se torna nossa existência
quando há buracos no estômago:

Em minha primeira vida
fui feliz
- Tempo em que ser rei
era fácil demais.

Em minha segunda vida
fui Primeiro Mundo
- Eu não carecia de fé,
tudo era imenso.

Em minha terceira vida
fui fútil
- Quanta beleza e exatidão!,
tocar as coisas me satisfazia.

Em minha quarta vida
fui bruxa
- O mundo ao meu alcance
depois a fogueira.

Em minha quinta vida
fui o herói
- Mudei meu nome, destruí impérios,
obtive a graça.

Em minha sexta vida
fui gato
- percebi que me restava
apenas uma vida.

Em minha sétima vida
fui eu
- Cava mulher
morta de câncer.

quinta-feira, junho 21, 2007

Cruz

Não morre não.
Enfia tua língua na boca da vida
e emenda um beijo cor-de-rosa
que não acaba nunca...
Depois rasga a roupa da vida,
seduz a vida,
deixa a vida ser tua amante feliz.
Não morre não.
No máximo, canta para a vida dormir.
Depois acorda a vida!,
e enfia novamente tua língua azul-marinho
em sua boca cheia de dentes.
Consente vez ou outra
que a vida te morda
- O que é um homem sem marcas?
Finge que não gostou,
finge que a vida necessita do teu perdão.
E perdôa,
mas não morre não.
Não precisas engordar teus dedos,
apenas não deixes que eles desapareçam,
precisas dos dedos para cutucar a vida,
precisas dos dedos para ferir a vida
quando te sentires ameaçado.
É verdade, irmão, a vida é traiçoeira,
a vida é a mulher que nos beija a testa
e depois rouba os nossos maridos.
É verdade, igual, a vida é o homem mau
que freqüenta a nossa casa
e molesta as nossas crianças.
Mas não morre não,
que é exatamente isso que ela quer.
Orgulha-te, e na hora certa,
acontecerá a merecida morte da vida:
morrerá desgostosa por te ver tão feliz,
de pé.

segunda-feira, junho 18, 2007

A Prostituta

Onde estás, Homem Que Me Amará?
Ser humano que me acolherá
em seu ventre materno.
Entre o instinto de bicho desbravador
- pondo os pés em minhas terras -
e o bendito som erudito do mar espancando as pedras.

Onde estás, Homem Que Não Saberá Mentir?
E que olhará para mim
como um colhedor de frutas
olha para uma maçã:
sem segredos e mistificação,
mas co'a garganta cheia de coração.

Onde estás, Homem Das Gentilezas?
- Sim, até para devorar
é necessário ser gentil.
O mel pode não dar nenhum prazer,
quando o morrer, Homem Escondido,
se dá antes do nascer.

Eu não peço ser coisa divina
cheia de paixão pelo pudor.
Não peço que corem o meu rosto,
apenas não quero o desgosto
de ser gente sem amor.

quarta-feira, junho 13, 2007

Namoradinho

Vem ser, vem ser meu namoradinho.
Como naqueles filmes
em que o pobre poeta
cai de amores pela moça nobre.
- O que é um nome, amor?
Vem ser, vem ser meu namoradinho,
o namorado que roubará
a flor mais bonita do jardim do vizinho,
e chegará suado à minha casa,
ofertando-a, tremendo,
com o sangue escorrendo
do dedo agredido pelo espinho.
Ah, vem ser meu namoradinho!
O namorado mais amante
que alguém já pôde ter.
Que embalará canções românticas, coloridas,
sussurradas ao meu ouvido
- unicamente teu! -
para o meu despertar.
Vem ser, vem ser meu namoradinho,
o namorado que chegará antes que o sol
só para ver como é o meu jeito de sonhar.
Depos me cobrirá de beijinhos
que me libertarão do feitiço
- vem ser amigo íntimo do muito imaginar.
Vem ser meu namoradinho,
aquele primeiro, bonitinho,
convocando-me ao passional
mundo dos cafonas.
Vem me deixar trêmula,
grudada ao radinho de pilha,
sonhando alguma ilha
distante e sorridente.
Vem ser meu namorado cheio de dentes,
para quando receber os meus sinais,
morder-me muito, morder-me mais!
Vem ser, vem ser meu namoradinho, amor.
Podemos passear na praça, na praia, ou mesmo na sala de casa,
inventar piquenique
e nos alimentar - um ao outro -
de frutas frescas.
Vem ser o namorado que se arrisca
a subir no galho mais alto da árvore mais alta
do quintal da bruxa má
para colher maçãs.
Depos à mim entregá-las, sorrindo,
comparando-as com minhas bochechas
coradas de emoção.
Vem ser, vem ser meu namoradinho, amor.
Mas se esta idéia não te agrada,
se não queres ser meu namorado não,
vem apenas ser,
simplismente ser,
vencer, irmão.

terça-feira, junho 05, 2007

Eu Sei

Eu sei quando estou apaixonada porque sou o que alimenta a fome.
A comida mais doce e mais amarga do homem.
E tanto(!) pode ser minha a sua vontade de morder:
dente após dente, num balé esquisito.
Eu sei quando estou apaixonada porque o meu estômago ronca aflito.

De repente, eu percebo
- uma vontade de envolver o moço em laços...
Quebrar suas costelas e invadir seu espaço.
Fazê-lo, pequeno, caber num prato qualquer.
E odiá-lo tanto; eu sei quando estou apaixonada.

Não nado em piscina de flores, como dizem os sonhadores.
Estar apaixonada é habitar aquário pequeno,
sem luxo, sem nada.
E sentir essa urgente necessidade de tomar alimento,
até beber a própria casa.

Eu sei: a paixão é querer devorar o mundo,
livre do medo da má digestão.

terça-feira, maio 29, 2007

Depressa

Pus o nunca freio em meu automóvel cardíaco,
fui gente,
será isso algum pecado?
Porque tudo passa em veloz subversão:
o tempo, as rosas, as lágrimas das meninas pálidas
do porão.
Tudo passa na velocidade das águas:
as nuvens, as bocas, as mãos sobre os cabelos.
Tudo passa e nada sofre
assim tão dilacerante como eu.
Será Deus capaz de querer tirar-me a pressa,
- sendo Ele o movimento do espírito em todos nós?
Tudo que eu quero é semear minha onipresença.
E contemplar a rosa antes mesmo do seu desabrochar;
arder debaixo de sol medonho
antes mesmo do sol raiar.

Grito: quero o mar revolto;
muitas ondas, nunca desaguar.
Enxurrada de saliva e pranto;
ser a menina atravessando o cântico
do coral da igrejinha.

domingo, maio 27, 2007

Naturalmente

Isso que eu faço
não é poesia,
isso que eu faço
é necessidade macia
que sai urina e fezes.
Isso que eu faço fede.
Isso que eu faço
é criar labirinto
para perder o que eu sinto
e depois encontrar.
Prendo a respiração
para o quase morrer chegar.
Depois solto a respiração
para o quase escrever devorar.

domingo, maio 20, 2007

Limite Feminino

O Tempo, para uma mulher,
é inalcançável.
O Tempo, para uma mulher que sonha,
imperdoável.
Qual Tempo resiste ao tempo?
Apenas o Tempo do querer libertar-se
e entrar jaula adentro
a tempo de não devorar-se.

quinta-feira, maio 17, 2007

Adolescer

Eu quero sair desta cápsula sorridente.
Embora sorridente, é cápsula,
e cápsula sempre aprisiona sorrindo
- é uma forma de enjaular meninas para o nunca vôo.
Deus do céu, quero ser livre!
Quero odiar o Deus do céu com tanta barriga fumegante,
que não caberia em mim.
Quero desacreditar nesse Deus,
cansei de ser a menina cristã carregando a culpa
de sugar os olhos dos machos irriquietos
(irriquietação malvada)
e corromper os homens de bem.

Eu quero sair desta cápsula sorridente
aonde eu me deito em corpos quentes
e destruo minha face pouco a pouco.
Quero o grito rouco,
quero o uivo louco dos bêbados do centro da cidade.
Quero perder as grades, soltar os fios,
amar o vício, e não odiá-lo tremendo.
Cuspir na cara do bandido e me apaixonar pelo inimigo,
sem medo de maltratar as formigas;
quero pisá-las, todas, elas.
Quero provar do inferno,
deixar apodrecer o pão nosso de cada dia.

Eu quero sair desta cápsula sorridente.
Que embora sorridente, é cápsula traiçoeira,
que não vê a hora de afundar-me em poço fundo
- de onde eu nunca mais conseguirei sair!
Deus do céu, quero ser livre!
Virar-me em passarinho
sem ninho, sem casa, até sem asa.
Ser menina sem boneca, sem roupa, sem nada.
Correndo atrás de não sei o quê.
Indo em direção ao não sei onde.
Quero apenas ser mulher,
mulher cheia de útero: isso basta.

segunda-feira, maio 14, 2007

Assombração

Eu tenho medo de você
por causa do seu bigode grosso com jeito-de-tudo-sabe.
Todas as noites, os mesmo pesadelos
me liquefazem:
um gigante bigode grosso com jeito-de-tudo-sabe
tentando entrar em mim
pela boca.
Sou intimamente feminina
e participo do clã das mulheres roucas.
Meu pai diz que eu sou louca,
mas ele não sabe o que é ser uma mulher
de cabelo em pé
assombrada por um bigode grosso com jeito-de-tudo-sabe.
O seu bigode é você
- amigo íntimo da carne!
E o tudo sou eu.
Eu tenho medo de você
porque você é o homem que me sabe.

domingo, maio 13, 2007

Há a bela e há a fera

O homem que eu fito
adormece bruto.
Anoitece impiedoso
derramando sobre mim
seus rios de líqüidos vorazes,
com sua cara de mau
e um jeito de violação.
Como são eternas as noites
em que eu não tenho direito a respiração!
Violenta-me como patrão
castigando a negrinha que sou.

O homem que me fita
acorda macio.
Amanhece cristão
derramando sobre mim
seus rios de água benta,
como sua cara cheia de sol
pedindo perdão.
Como são eternos os dias
em que tudo é religião!
Afaga-me como mãe
protegendo de qualquer absurdo a criança que sou.

À noite, este homem indaga minha carne.
Pergunta-lhe que mulher eu sou;
se eu oferto corpo aos amantes,
se eu me embriago, se eu me dou.
De dia, este homem indaga minha alma.
Também pergunta-lhe que mulher eu sou;
se eu oferto flores aos amantes,
se eu choro, se eu morro de dor.

Profano e sagrado é o meu amor:
este homem timidamente feroz.
Sorrindo, comendo, cuspindo, sofrendo...
Um estupro como uma canção.
Seqüestra-me e depois resgata-me.
E, nos filmes, me faz torcer para que empate
a batalha entre o príncipe e o dragão.

quarta-feira, abril 25, 2007

Agnes

não hei de acreditar na morte
sem a vida dela - e suas coisas mortas!
não hei de acreditar na vida
sem a sua morte sempre tão viva.
ela é diúrna e noturna
por isso mesmo sempre disposta
a encher-me de coisa absurda
- cruz às minhas costas.
vai-me ensinando o vôo
e num momento, subto suspiro que dou,
é moça capaz de cortar-me as asas
e chorar meu riso
e gargalhar meu pranto
fina trapezista - o mar que me expulsa é o mesmo que a abraça.
ela é objeto de luz não identificada,
profana e sagrada.
moça virgem, santíssima imaculada
que risca meu corpo
e enche os olhos d'água.
abro as portas do meu coração
para que o aqui dentro seja sua casa
viro O Grande Circo e suplico:
"dá-me a tua beleza!
tu que és amiga íntima da carne
e amada amante da natureza".

segunda-feira, abril 23, 2007

Sociedade Anônima

Esses carros que passam tão aflitos quanto o domingo
Qualquer coisa
Querendo correr
Desejando timidamente alguma coisa de fim trágico
Algo que traga um tremor corajoso de errar sem pudor
O domingo é um bicho que me morde, me arranca, me mastiga e me cospe na cama
E se essa última frase me contradiz? Digo-a?
Digo: hoje é o dia do último atraso onde todo esse medo deita no asfalto enamorando-se das pisadas descuidadas
Não vou me trair
Vou me atrair
E quando tudo isso irá acabar?
Aqui: segunda-feira.



(Amanda Moraes e Glauco César II)

sábado, abril 21, 2007

Morrendo

Se é pra morrer,
quero morrer direito.
Quero morrer cheio de morte,
quero morrer direito.
Morrer cheio de vida
é coisa de gente covarde.
Quero morrer num ato alérgico,
um edema de glote fatal.

Dá-me os teus sentidos:
sentes o pulsar em mim?
Pois é, não quero morrer assim.
Quero morrer quando tudo parar:
os dias, as noites, as festas...
quando tudo parar,
nunca morrer aos poucos.
Quero encher-me de coisa suicida.
Quero morrer até quando forem
morrendo as coisas suicidas.

O ar, o espírito, o paraíso;
que não sobre nada,
quero morrer direito.
Os pássaros, as virgens, o silêncio.
Quero morrer quando até a morte morrer.
Quando tudo morrer,
inclusive o poema.

Morri.

quinta-feira, abril 19, 2007

Clarice Lis No Peito

Suas mãos magras e trêmulas de poeta
seguravam firme a pá de ferro.
E num instante oco do espírito,
cravou em meu peito reto.
Achei-a grosseiramente má
(parecia odiar-me tanto!),
mas aceitei a condição de invadida
e deixei-a fazer seu trabalho.

Foi cavando
com olhos espertos de "agora você vai ver...".
Cavando, cavando, cavando...
Preparando as terras de mim
(talvez planejando alguma vegetação),
co'a boca contemplando
o que estava por descobrir.

E num momento
- lá no fundo do meio do mundo de mim -
senti-a arrancar-me a voz do peito,
sem luva ou proteção,
com a dor sangrando aos litros.
Veio mostrando-me, com o pulsante em mãos:
"- Olhe, querida, aqui está seu coração".

Descobri-me.




Para Clarice Lispector.

terça-feira, abril 17, 2007

O Circo (ou O Dia Em Que Uma Criança Não Foi Seduzida Por Um Palhaço)

Um homem magro de sorriso pintado
abriu as portas do infinito
e disse à minha criança:
- Vem comigo!
Ela não foi.
Prefiro suportar o chão que me pisa
(mas me possui de sonho)
a ter o infinito sorriso do palhaço que me devora
(mas me exorcisa medonho).

segunda-feira, abril 16, 2007

O Erro.

Há alguma coisa errada comigo.
Quando eu me deito, me durmo, me ajeito,
me sonho, me espero, me enfeito, me enfeitiço;
eu me obscuro.
Há alguma coisa errada comigo.
Não sei te dizer que nome tem, por que veio,
se vai voltar. Não sei a idade, a cor da camisa,
se usa sapatos ou me pisa sem pele.
Não ouço sua voz nem tento entender suas sombras.
Apenas não me traio.
E assim eu me entendo, me invento, me recebo, me revelo,
me enfeio e seduzo o belo;
eu me obscuro.
Há alguma coisa errada comigo.
Talvez o erro.

quarta-feira, abril 11, 2007

Íntima doçura

Lambo-te o mel que escorre aos litros!
(Sou mulher de lamber as coisas).
Sem saberes, lambo-te a vida toda
- de sorrisos errantes e andar descontente.
Lambo-te o olhar minucioso
- olhar dos corcundas -,
a falta de ar nos pulmões.
Lambo-te a boca cheia de dentes,
lambo-te a espera d'um amor ardente,
lambo-te os tigres selvagens que são teus cabelos
em caracóis cheios de dedos.
Lambo-te a poesia distraída que deixas cair,
e as florestas de ti estou lambendo...
(Sou mulher de lamber as coisas).
E assim vou vivendo, sedenta,
como quem acredita
no poder das línguas.

Água de beber.

A emoção me acompanha
Amante amiga íntima doçura e compaixão
Sem pontuação
Freio nunca há de ter
Loura aparição do bem-querer
A emoção me empresta ouvidos
E me invade a boca
Arranca-me palavras de poder
Sou velha frouxa murcha gostar de ceder
Ginástica do bem viver
A emoção fabrica um ninho
Alimenta o passarinho
Na árvore de mim
E transforma amor em líquido
Um brinde ao Grandi espírito!
A emoção é água de beber

Camará.



Para Emília Grandi.

domingo, fevereiro 25, 2007

Mistura

Em minha larga boca
adormecem seis tipos de saliva.
As mais salgadas,
as mais doces
e as mais ácidas.
Azeda carne que lambo sem juízo.

Em meu mendigo interior
adormecem seis tipos de gente.
As mais elegantes,
as mais desvairadas
e as mais sinceras.
Bendito sangue que bebo sorrindo.

Em meu cavado estômago
adormecem seis tipos de borboletinha.
As mais serelepes,
as mais minuciosas
e as mais podres.
Triste mistura que vomito chorando.

terça-feira, fevereiro 20, 2007

O artista

Um artista pode deletar a dor que sente.
A dor como cordas que libertam o libertino
e aprisionam o pacato menino d'alma.

O menino chora.
E acende a fluorescente luz dos olhos que lacrimejam.
A lágrima por si só me parece ser nada.

O nada aonde a lágrima dos olhos fluorescentes do menino
o libertam daquela alma cheia de velhice.

Eu não sei ser artista.

domingo, fevereiro 11, 2007

Desvairada

Invado a minha própria alma
- costumo seguir os caminhos mais brutos.
Gosto demais do beijos sem amor
- prefiro morrer de fome a morrer de dor.

Sou louca instável,
e tardo dentro de algumas pessoas.
Amanheço inquieta mendiga,
demoro e arranco carícias boas.

Mas homem sem mim vive melhor
- para quê, para quê a insônia
e todos os alardes que provoco?
Para quê os poetas endiabrados que invoco?

Coisas sem mel
- não sendo assim, sou gato morto.
Sentimentos sem pés
- sou mulher aflita, sou anjo torto.

Fuja de mim antes que eu encarne
- subitamente me alucino!
Sonho vadio: longe do chão;
amo pequeno: perto da carne.

Sou pecado e pecador
- sou fraca.
Viva por você, sem luto.
Eu só sei fazer sofrer,
eu machuco.

quarta-feira, fevereiro 07, 2007

Um só riso.

O sorriso dela me foi tiro de canhão.
Sorriso que mandava em tudo.
O sorriso era patrão da boca,
patrão dos olhos,
patrão do tecido epitelial.
Era um sorriso-carne que encharcava
minha visão de menino aprendendo a sonhar.
O sorriso dela dizia: "Pare!",
eu parava.
Depois dizia: "Ande!",
e quem era eu para contrariar?
Um sorriso assim frouxo, assim largo,
assim senhor.
Não apenas um sorriso,
mas um sorriso de verdade.
Eu entrei no sorriso dela,
afrouxei a gravata,
cochilei no sofá.
E quando, por agonia, tentava fugir,
a dona gargalhava.
Hoje sou um morto morador do sorriso dela.
Moro e morro no sorriso dela.
Para sempre minha mortalha:
Um sorriso assim dente, assim gengiva,
assim casa.

sexta-feira, janeiro 05, 2007

Hora.

Madrugada!
Hora em que a fada
Cochicha em meu ouvido
Histórias dramáticas.
Hora em que eu tomo,
Num gole de gim,
A excêntrica pílula do vôo.
Hora em que eu recordo,
Sem lembrar de mim,
As tantas mulheres que sou.
Hora em que o gozo mais alto
Anima a minha sensatez
E a dor me faz tropeçar
Em buracos.

Madrugada!
Quando os homens se calam,
Eu grito.
Quando os anjos se perdem,
Eu atino.
Quando o tempo aprisiona,
Eu liberto.

Eu sou menina e sou menino.

É na madrugada
Que eu abro as janelas de mim
E assumo sem problemas
O meu romance secreto com a cortesã
De nome Poesia.

quarta-feira, janeiro 03, 2007

A minha morte!

Eu me sentei assim meio de lado, em posição desconfortável, para tentar fazer chorar minha coluna. Fiz três furos em minha barriga, joguei álcool, não assoprei. Revi fotos, reli cartas, calcei as botas da rua e caminhei de volta ao meu passado sombrio. Maltratei-me como um maníaco em busca do gozo pleno. Raspei meus cabelos, rasguei minhas roupas, estuprei-me. Rolei em chão áspero, não respondi às minhas perguntas. Não conversei com Deus, queimei poemas, arranquei meus pêlos, um por um. Parei a música, esqueci os homens, não pisquei os olhos, deixei apodrecer meus dentes. Eu estava completamente feliz, assim, rindo à toa, mas desejava o mais cruel sofrimento. A felicidade sempre me enfadou. Então me joguei do décimo quinto andar. A queda, sim, doeu bastante. Eu sempre preferi morrer de dor a morrer de tédio. É uma morte mais, digamos, emocionante.

Furacão.

Eu abria os meus caminhos para os mais feios
Os feios também têm coração
Eu abria o meu coração para os sem caminho

Eu rompia com o mundo em nome dos fracos
Eu não sabia que se dar tanto doía
E abriguei os sem lar mais do que cabia

Eu era pequena e desconhecia
Deformei meu rosto em queda macia

Engoli o tempo! - esta pílula do entendimento
E enfim entendi
Que não apenas de borboletas vive uma barriga

segunda-feira, janeiro 01, 2007

Morte.

Pintei o céu de preto
Sequei o mar
Mandei cair uma chuva
Parei o ar

Devastei as matas
Desgracei a vida
Aprisionei os pássaros
Feri a ferida

Fui-me tornando fria
Frígida e calculista
Aos poucos, tornando-me espada
Da guerra contra a paixão

Não estanco, deixo sangrar
Não durmo, desisti de sonhar
Um tiro na boca foi a solução
Odeio você
Como quem morre de amores vãos.

Ode ao amor.

Oh, Divina criatura
Feita de mel
Dilacera e cobre o meu peito
De amores, vultos no céu

Oh, instante em vapor
Colore o meu rosto flácido
Emancipa as línguas oprimidas
Deixa-as livres no Lácio

Esgota de ternura e sonho
A paz que eu ofertei
Colhe as flores do medo
Limpa o jardim que habitarei

Toma forma feminina
Com toda sua grandeza
Faça-me amigo íntimo da carne
E amado amante da natureza.