quinta-feira, agosto 30, 2007

Surpresa

Quando não se morre
um pouquinho a cada dia,
um rosto é somente um rosto
- humanamente feliz e belo!
Cara crua cor-de-rosa-chá,
explícita e vulgar.
Quando não se morre
um pouquinho a cada dia,
um dia é somente um dia,
e as noites selvagens
passam despercebidas pelos sentidos
- não se sente estrelas e lua-cheia
ardentes no céu da boca.
Não morrer um pouquinho a cada dia
é como dormir de luz acesa;
fumar e não tragar;
vencer tanto, vencer tão completamente,
a ponto de só restar
a agonia de se ter vencido sempre.
Não morrer um pouquinho a cada dia
é como o apego à rima;
é como assistir de camarote
essa orgia alucinante que é a vida;
é como nunca ter dado um tiro na boca;
é como dizer não suportar o mundo,
e suportar!
Quando não se morre
um pouquinho a cada dia,
um estômago é somente um estômago
- livre das borboletas e dos buraquinhos -
e a vida não é vida,
pois não haveria o novamente fecundar
se não houvesse o antes abortar
.



Para Duda Borba.

segunda-feira, agosto 27, 2007

Noite Primaveril

É hoje que Marte despertará junto a Lua, e nós dois
- eu e você - iremos emendar um balé esquisito cheio
de estrelas. Uma dança clássica em cima das telhas
bambas de um teto selvagem.
É hoje, amor, prepare-se. Como nos tempos da arrogância
terna; como nos tempos da loucura sã; como nos
tempos da cólera benigna.


É hoje que Marte despertará em silêncio - somos os
únicos a saber. Um planeta Marte cheio de dor. Uma dor
de quem sabe que a noite é curta. Uma noite que estenderá
os braços para que possamos nos sentir abraçados. E um
abraço, amor, que será o nosso balé esquisito cheio de estrelas;
a nossa dança clássica em cima das telhas bambas de um
teto selvagem.


É hoje que Marte irá beijar a boca da Lua, e nós dois -
eu e você - iremos testemunhar o coito alucinante.
Esta história de amor entre a Lua e Marte, como eu e
você, esse cheiro de violência sutil. Nesta noite primaveril
em que o céu expulsará todos os seus habitantes para que
o Grande Óvulo Lunar seja fecundado. Nesta noite em que
o universo se tornará um imenso espelho para que nós dois,
dançando em rodopios brilhantes debaixo da paixão de Deus,
possamos descobrir que a paixão de Deus, amor, é a
paixão dos homens.

sábado, agosto 25, 2007

(Des)Conheço

Um desconhecido tocou meu íntimo.
Estranhei este corpo estranho,
mas entranhei-me deste corpo,
e entranho-me.

Não invadi sua casa,
não vasculhei suas gavetas,
não arrumei seu armário,
não acertei seu relógio.
Tudo para que o desconhecido
fosse sempre assim,
vulto inexato,
aos meus olhos,
de quem somente se permite
ser explorado.
- Eu nunca exploro.

O desconhecido morou em mim.
E depois de algum tempo
sendo habitada,
pude perceber que
quanto mais eu o desconhecia,
mais eu me reconhecia
e me amava.

domingo, agosto 19, 2007

Um Só

Quando se ama,
se esquece e se abandona;
se incendeia e se anoitece
em chamas.
Se escurece à luz do dia,
quando se ama.

Quando se ama,
não se vive como os outros
- Amar é morrer ao nascer;
murchar ao brotar;
desabar ao erguer.
Se queima os resquícios
que provam que, um dia,
se viveu,
quando se ama.

Quando se ama,
se rasga e se deleta,
levando junto certidão de nascimento,
identidade, atestado de óbito.
- O que era pouco, torna-se nada;
e o que era nada, torna-se a ausência de tudo,
inclusive de nada.

Porque quando se ama,
se inexiste
em quaisquer corpo e lugar
que não a pessoa amada.

segunda-feira, agosto 13, 2007

Sem Fim

No dia em que o Menino nasceu em mim,
eu conheci o amor dos loucos.
O amor desprovido de licenças e gentilezas.
O amor que não fala - grita.
O amor que não pede - implora.
Quando ele entrou em mim
pela primeira vez,
ouvi aplausos, vaias, pessoas murmurando
sílabas desconhecidas aos meus ouvidos.
Era como se o mundo estivesse aqui comigo,
todo o mundo - com suas guerras e seus apelos.
E na verdade, não era o Menino entrando em mim,
era uma multidão de Meninos querendo cessar,
querendo consumar aquela loucura.
Eu nunca senti desejo por ele
- o amor que me habitava
era tão imenso, tão imenso,
que não sobrava espaço para o desejo.
Digo, inclusive, que o amor era maior que eu,
e que não cabia em mim
- escapava-me por entre os dedos.
Um olhar do Menino
era a luta livre dentro dos meus órgãos.
Uma luta sem final,
por isso mesmo, sem vencedor.
Era o ato, o verbo lutar, apenas.
Quando o Menino passava a língua no meu pescoço,
eu sentia a ponta do meu dedo do pé
sofrer as consequências.
E eram tantas consequências, Meu Deus,
que andar eu não podia mais.
E o tempo valsava quando eu estava com o Menino!,
e a Terra toda era uma criança,
e o medo não se instalava em mim.
Eu conheci o amor dos loucos,
o amor dos roucos,
o amor dos pálidos.
O menino estava sempre perto,
sempre ao meu alcance,
sempre dando o rosto pra eu bater,
sempre dando o corpo pra eu brincar,
sempre dando a carne pra eu morder.
O amor pelo Menino é
um bicho feroz que devora tudo que vê pela frente.
Sobe as escadas,
bagunça o quarto,
incendeia a casa.
É o amor que os pais não querem para os filhos;
o amor não compreendido
pelas pessoas
que não eu e o Menino;
o amor eternamente estudado pelos psiquiatras.
Quando eu morrer, provavelmente,
o amor não vai comigo.
Porque o amor é o inimigo
que fere, sangra, despetala.
O amor dos loucos nasce,
o amor dos loucos mata,
mas não morre nunca
este meu amor pelo Menino.

terça-feira, agosto 07, 2007

Sem Tempo

O tempo, hoje,
não passa de um homem
magro e nu,
solto - e perdido -
na imensidão
que cada coisa carrega.
O tempo, hoje,
está quase morrendo,
pois esqueceu de tomar
os remédios
que o médico receitou.
Ele - o tempo! - está cansado,
desconfortável,
sem tempo para a contemplação.
Ele, hoje,
não vive - apenas vegeta -
e não tem mais
os poderes de transformação.
O tempo não é mais aquele tempo,
gordo e saudável,
dos tempos dos meus avós.
Ele agora está magro e nu,
não corre - voa -
por isso mesmo
não derrama mais o suor sagrado
que outrora
fazia brotar flores
no asfalto.

domingo, agosto 05, 2007

A Descoberta

Seco o lar.
E assim já começo a descobrir
o que mais dói em mim
- O porta-retrato com a fotografia
de um pai imortal que sempre morreu,
ou a poltrona cheia de um corpo
com um coração que nunca bateu.

quinta-feira, agosto 02, 2007

O Segredo

Eu sou superficial.
Não amo os homens,
não sinto saudade da família,
não tenho compaixão
pelos que estão cheios de ausência.
Eu sou superficial.
Vês esta carne
coberta de pele branca?
Sou isto, apenas isto,
e dentro possuo um vácuo,
um espaço de tempo que não existe,
que pode-se chamar também
de Nada.
Eu sou superficial.
Sou como o que dá pra ver
quando sentamos numa pedra
e observamos um rio
- superfície.
Não possuo planetas,
peixes, baratas, ideologias,
terras, planaltos, asfaltos, populações
dentro de mim.
Eu não carrego essas imensidões
dentro de mim.
Eu não sinto dor,
eu não sinto frio,
eu não me desespero,
eu não conheço o arrepio.
Eu sou superficial.
Eu sou a exatidão do ser,
eu sou a compreensão do estar.
Mas na minha mochila eu levo uma coisa,
uma raridade,
um segredo
- Eu consigo enxergar
no escuro.

quarta-feira, agosto 01, 2007

Eu Feto

Silenciosamente,
sinto saudade do ventre
da minha mãe.
Onde eu permanecia
silenciosa;
onde tudo era único,
ímpar, divino, mágico.
As suas paredes uterinas
me afastavam do mal
do mundo.
E eu sentia, lá de dentro,
a boca da minha mãe
se abrir em flor.
No ventre da minha mãe,
o tempo valsava,
custava a passar,
sempre sonolento e sonhador
- o tempo dentro da barriga da minha mãe,
era um templo noturno
aonde o amor não tinha descanso.
Eu não exercia papel algum
que não o de existir
para amar e ser amado.
Como era bom
ser feto luzindo
no interior feminino!
Mas tamanha era a minha vontade
de nascer mulher,
bravia e quente,
para ganhar o tempo
que eu pensava ter perdido.
O parto não doeu,
apenas cortou-me em pedaços.
E quando, enfim, povoei as ruas
- e todas as avenidas que hoje eu abraço -
pude perceber que o melhor mesmo
era ter ficado apenas
imaginando o lado de fora.
Imenso é o sofrimento
desse eu que não se conhece mais,
desse eu desprotegido e fugaz.
Hoje, silenciosamente,
sinto saudade da escuridão do ventre
da minha mãe
- A minha mãe que sou eu,
e esse ventre, esse glorioso ventre
que é meu.