domingo, outubro 28, 2007

A Carta

Escrevo-te como quem vomita. Perdoa-me qualquer palavra chula, tudo aqui escrito será involuntário. As horas vão passando e eu muito mal sinto beleza em mim - Perdoa-me também o cheiro podre, não conseguirei escrever cheiroso porque por dentro sou quase cadáver, e por fora, estás vendo, sou carne-viva. Estou seca e ácida, poderei te causar a repulsa e o afastamento, mas serei fiel aos meus instantes de fome e às minhas obscuras sílabas. Direi-te a verdade? Sim, somente ela tem sido amiga, chegando a ameaçar tudo o que não tem, no mínimo, leve coração pulsante. Querido, conhece-me como conheces a ti, observa-me nestas palavras e escuta: preciso te dizer que há mistérios por revelar; eu sou aquele caixote, no porão, que nunca abriste. Abre-me, querido, esta flor murcha que sou quer te falar: segredos.

Minha beleza nunca me deixou forte; não é abrigo, é estar nua na vitrine, exposta à tudo. Minha beleza não é bonita, é dia revertido em escuridão, a beleza de como as coisas são: feias e incompatíveis. Lembra-te: escrevo-te como revelação. O meu rosto não é mais aquele rosto, e o meu corpo anda numa transparência que Deus me acuda: olhando-me se vê minh'alma. As pessoas me olham de relance, pois o sangue em meu espírito não permite que elas pousem seus olhares sobre mim por mais de pouquíssimos segundos. É tudo de uma dor medonha, que eu me vivo e me dano, me vivo e me dano, como em círculos. Estou tonta de tanto girar; sou girassol que nasceu na floresta sem luz. Querido, como és belo perto de mim! Como és belo em tua sanidade! Não espero de ti qualquer resposta; qualquer resposta tua - por mais que negues as minhas verdades para que eu fique tranqüila - será absurdamente maior e mais bonita que minhas palavras, apenas confirmando quem estou te falando (aqui será 'quem estou te falando' e não 'o que estou te falando', pois não falo sobre mim, não falo de mim, simplismente falo eu, como quem se despe muda). Além de tudo, temo mais absurdos. Portanto não respondas, preciso falar sozinha, em tom de confissão, como em cima de um divã - desculpa-me, mas preciso urgentemente te descer à condição de espelho para que me escutes sem te pronunciares e para que, através de ti, eu me (re)conheça toda: serás meu reflexo.

Jamais faria mal à alguém, tu sabes um pouco de mim, mas terminei por fazer um mal tremendo à minha pessoa. Não foi de propósito, juro-te pelos meus restos, foi por descuido, por um fio tênue que separa o fel necessário do fel ordinário. Amei-me tanto, querido, mas me despetalei a tal ponto que agora só me resta a loucura de guerra. Minhas guerras sempre foram internas e isso me custa muito sofrer. Amei-te muito também - foste meu homem, meu amante, meu filho, meu irmão e herói; foste um tudo-junto e abrir mão do teu amor foi como jogar-me à escuridão. Joguei-me para conhecer de perto a agonia de me saber eu. Foste alguém que morou em minha barriga por muito tempo, mas tive de te parir, te libertar - confesso que nesta hora pensei em mim, pois te libertando estaria me libertando também. Agora estou livre de ti, e para me ter por completo é necessário que eu não te tenha, nem pela metade.

As horas parecem voar, tudo passa depressa demais e eu sinto que está chegando o momento da grande notícia. Não, pensando melhor, ainda não, vais ter que esperar mais um pouco, talvez eu esteja mesmo querendo te preparar para o mergulho: o grande mergulho em mim (lembrando-te que eu te escrevo para mim; tornei-me profundamente egoísta depois do choque). Ah, querido, se soubesses o bem que faz se conhecer assim, escreverias algo sobre ti à qualquer pessoa, logo, deixando-te escorrer aos litros. Quando escrevo, ponho-me a rogar por minha própria ajuda; escrever-te talvez esteja sendo uma forma d'eu desistir do que, ultimamente, tenho planejado: horrores. Mas até agora não desisti de nada, sou só uma fruta velha que nunca foi colhida - apodreceu no pé - e pensar nisso, agora, dá-me ânsias de vômito (e como te escrevo como quem vomita, prefiro dizer que pensar nisso, agora, dá-me ânsias de escrita. Que fazer? Vomitar-te).

Deus, estou perdendo a coragem de falar. Aproveitarei este momento, então, para te contar minhas empreitadas: andei sonhando demais. Não falo do sonhar que todos sonham, mas do sonhar na prática, infalível e cruel. Aquele sonhar que está no pegar de objetos, no abrir de bocas, nos goles de gim. O sonhar no presente do indicativo, árido e sertanejo: o fazer como música. Num desses sonhos, confesso-te, arranhei-me toda. Sempre tive o coração vulgar, mais vulgar que o corpo, mas inventei de fazer o corpo ser tão vulgar quanto o coração. Resultado: solidão. Fui bruta uma única vez, por experiência de exacerbação, queria me livrar do que impuseram às mulheres e terminei por me machucar. Acredito que os homens - não adianta - os homens nunca nos entenderão. Até tu, querido, não tentes me entender, os homens são burros como o que, e a força das mulheres se perde quando alguém as entende. Prefiro assim. Pois bem, fui brutalmente ferida por alguém que me quis para ficar em sua estante. Alma como troféu, Deus me livre, nunca mais! Desisto, hoje, de tudo isso, pois não nasci para ser aquilo que eu não sou. Já sou mulher pálida e ofendida demais pela vida, pelas minhas verdades, por mim mesma, não me deixarei ofender mais por ninguém que não eu. Não, nem eu mesma poderei mais me ofender, isso faz parte da grande notícia, embora não a seja por completo. Agora te direi, agora, criei coragem como quem, subitamente, alucina-se:

Adeus. Perdoa-me, mas a grande notícia é este meu adeus infame. Somente este adeus; se esperavas algo maior que um adeus, perdeste teu tempo me lendo. Tornei-me fria assim, toda imensidão fica pequena em minhas mãos, embora coisas miúdas me causem monstruosas cóleras. Adeus, querido, adeus, adeus, adeus. Terminarei de abandonar-me, quero que saibas que sofro de amor por mim - minha primeira metade ama minha segunda metade, e minha segunda metade não ama minha primeira metade -, a culpada de tudo sou eu, não te esqueças disso, eu, eu, eu, como fui a vida pós-choque inteira: sempre eu, sempre egoísta. Tratarei de enfiar uma faca em meu peito, num ato alérgico e egocêntrico, quero chamar atenção de mim. Talvez de Deus. Mas tenho de te dizer adeus logo, antes que eu morra e falte algum adeus. Tenho de te dizer todos em uníssono: ADEUS, ADEUS! Que fiques com os anjos porque vou partir como quem apenas sabe que vai - para onde pouco importa. Preciso ir com todas as minhas forças restantes, preciso morrer. Já que em vida, estive morta, creio que morta, estarei viva. E como passarinho que canta alto e cruel pela manhã, te direi mais uma vez: adeus. Vou-me, amargamente, deixando-te - como alguém que trata só dos seus interesses - a minha trágica verdade.

2 comentários:

Luis Gustavo Brito Dias disse...

- este reflexo de sí própria, para quem quiser doer.
adeus.

Anônimo disse...

ah, vai te cagar!