segunda-feira, janeiro 26, 2009

Confissão de uma mulher amada

Compreenda as minhas divagações.
Pois vivo,
co'a liquidez com que vivem as mulheres,
solta em tuas veias.
Cambaleio aqui,
cambaleio ali,
e - malandramente - escapulo de ti:
peço que compreendas as noites
imensas que há em mim.

Compreenda se hoje eu faço
do teu corpo o meu lar,
e amanhã engulo, faminta,
as delícias da fuga
(é que algo sem rosto me apavora toda):
defendo-me trazendo à superfície
o Monstro Da Lagoa;
defendo-me tentando distrair o paladar.

Monto em meu próprio dorso, e vou!
Pois temo ser castigo
e, assim, ser castigada...
Me assombra ser o ser amado
- compreenda: não fujo daquilo que és,
mas daquilo que sou ao teu lado.

sexta-feira, janeiro 09, 2009

Romance

"Aurélia" - não gosto do meu nome. Quando pronunciado de forma rápida e cruel, ouve-se "a orelha". Às vezes eu quero me machucar um pouquinho e o pronuncio de forma rápida e cruel para mim mesma, baixinho. Muitas vezes sou cruel comigo e com os outros, mas muito mais comigo porque, quando faço uma maldade para alguém, eu me machuco também. Então sou duplamente cruel e por isso pareço um gigante mas não passo de uma mosquinha sobrevoando um prato de sopa.

Não gosto do meu nome porque não gosto da minha orelha. Ela é toda feita de um defeito gravíssimo: um pedaço que falta. Sinto-me uma aleijada, confusa por não saber ao certo se devo me consertar para que os outros me enxerguem bonita, ou se devo extrair a beleza da falha e defecar sobre a cabeça dos homens. Intimamente, temo a situação em que alguém me pergunte o meu nome, eu responda (por descuido) de forma rápida e cruel e, involuntariamente, a pessoa olhe para a minha orelha e perceba que ela não está inteira. A minha orelha também sou eu... eu não estou inteira. E são pouquíssimas as pessoas que conseguem enxergar que o aleijão, às vezes, é justamente o que torna a existência completa. O amor, por exemplo, tem disso.

Quando eu era jovem e comecei a perceber que havia em minha beleza algum poder misterioso com os homens, vivi um tórrido romance com um professor velho. Eu nunca fui a mais bela da escola, aquela que todos os garotos desejavam possuir, porque eu nunca quis ser. Eu possuo um tipo de beleza que pode ou não se manifestar: é questão de escolha. E eu nunca escolhi dar o ar de minha graça àqueles garotos mau-cheirosos e sardentos. Então era bom mesmo que eles gastassem seus púberes suores com Cecília e Amélia... assim, sobrava-me tempo e espaço para escolher um alvo e fincá-lo, certeiramente, com minha flecha juvenil. Escolhi o professor velho também porque a minha maior arma não eram os cabelos soltos ou as bochechas coradas de sol - a minha maior arma era mesmo a juventude.

Vou tentar falar desse romance porque assim eu me fortaleço um pouco. Lembrar é coisa sagrada, encontra-se as raízes das falhas, como quando descobrimos novos detalhes cada vez em que assistimos ao mesmo filme. A minha pequena história com o professor não tem nada de novo. Muito pelo contrário: sem perceber, obedece rigorosamente ao clássico e é coisa estagnada, como qualquer lugar-comum. Por isso eu peço, do fundo de minha alma, que não dês tanta importância a estas linhas, Caro Leitor, mas que fiques inteiramente a par das minhas duras entrelinhas.

Ele, o tal professor, era um homem muito bonito. E era imenso, pois havia dedicado longos anos de sua vida à sofisticação. Um intelectual? De maneira alguma. Mas um homem que sabia exatamente como conduzir a própria vida ao declínio. Mesmo as quedas do professor haviam sido arquitetadas da melhor maneira, elegantes, como a poesia Romântica. Dava-me aulas de teologia, sabia de cor os mandamentos de Deus, os pecados capitais, mas o que sabia fazer com mais propriedade era mesmo pecar. E atolava-se numa fama violenta que sobrevoava os corredores, descia as escadarias, corria o pátio, até ganhar a imensidão do jardim do colégio. "Ele adora menininhas", comentavam todos. Mas, de todos, apenas eu tinha no corpo a prova viva de que as especulações eram mesmo verdadeiras. Eu era a verdade, em carne-viva, do professor - eu, que no primeiro dia de aula, aos quinze anos de idade, já o tinha como presa fácil. Sua boca e suas mãos eram iguaizinhas as do meu pai - requisito crucial para que eu o elegesse amante.

Estou com ânsias de vômito... deve ser a boca, as mãos do professor. Sim, ele era muito bonito. Tinha pouco mais de quarenta anos de idade, barba e cabelos acinzentados, pele boa, dentadura pronta para exercer o seu papel . O que nos uniu? Conscientemente, o fato d'eu, na presença dele, entrar em contato com a parte absurda da vida da qual eu ainda era terminantemente proibida de provar. Enquanto ele, na minha presença, entrava em contato com a vida que ele pensava ter deixado escapar por entre os dedos. Superficialmente, era isso: ele me invejava profundamente por eu ser jovem, e eu o invejava por ele ser velho. E foi assim, sem medo e com uma vontade mútua e avassaladora de ser o outro, que nós dois pecamos, em cima da mesinha à qual ele se sentava, todas as manhãs, para falar à turma de desinteressados a importância daquilo que é sagrado.

Aquele colégio ensolarado passou a ser a mais doce arena para o nosso amargo combate. Amávamos tanto quanto odiávamos um ao outro. Eu era a prostituta, o horror do professor, pois fazia questão de não saber disfarçar mesmo nas horas de aula. Insinuava-me toda de forma a atingí-lo e deixá-lo desconcertantemente furioso. Muito furioso. Ao final de tudo, pegava-me com rispidez pelo braço, levava-me a um canto qualquer e dizia-me que eu era louca. E eu era louca. Quando ele dizia "louca...", eu sentia a tonturinha de quem se reconhece num insulto. Era tudo verdade e a verdadeira loucura sempre me encheu de uma espécie de medo alegre.

"Se descobrirem, ele será expulso do cargo", dizia-me as minhas coleguinhas. "Pois que seja!", eu respondia. Eu queria exercitar a brutalidade em mim, acabar com a vida de um professor qualquer. De um barbudo qualquer. De um homem qualquer. Eu sempre fui moça frágil demais, e ser assim, violenta, era uma deliciosa maneira de me proteger dessa fragilidade que tanto me atormentava. Mas, não sabia eu (claro), era também o que a denunciava. E o professor, homem maduro e vivido, logo percebeu que, se quisesse, poderia me desarmar e me deixar nuazinha. Mas, como já era de se imaginar, ele não quis - e, não só não me desarmava, como ainda me ensinava a apertar o gatilho e matar. Foi sua opção continuar sendo deliciosamente perturbado por mim. Além de tudo, ele carregava nos olhos a doçura romântica de quem já havia passado da fase da maldade. Eu vomitava e ele devorava o meu vômito, faminto por qualquer pedaço de coisa que viesse de dentro de mim.

Parte de mim sabia que o espetáculo era sórdido e de inegável baixeza. Na intimidade, lá dentro do meu quarto, eu até lambuzava-me de alguma culpa. Mas a outra parte de mim necessitava tanto empurrar o homem velho ladeira abaixo, que a culpa era mesmo reservada aos momentos mais íntimos e neles ficava, trancafiada a sete chaves. Ninguém podia enxergar-me culpada - apenas eu. Para o mundo eu havia de ser a pequena vítima que caiu nas armadilhas de um barbudo, e tudo o que eu fazia contra ele estaria dentro do meu direito à defesa. Era como se eu atacasse o professor antes que ele me atacasse... certa de que, do contrário, eu seria vencida.

Onde estaria o professor neste tempo de agora? Penso que nele não caberia jamais o tempo de agora. Ou ele não caberia no tempo de agora. O fato é que esse homenzinho de ingênua audácia é grande ou pequeno demais para caber na sujeira do mundo de hoje. Ou então é a sujeira do mundo de hoje que é grande demais para caber naquele corpo magro e desajeitado do professor. Quando ele ria, apertava os olhinhos, assim como o meu pai. E esses olhinhos eram tão bons quanto cruéis comigo, pois seriam capazes das maiores barbaridades para depois, apertados, deixar escapar algo como "foi por amor".

Depois que o meu pai foi embora de casa, deixando minha mãe, eu e minha irmã mais nova sozinhas, entendi o significado de um homem na vida de uma mulher. Não era ele que fazia falta... pelo menos não a carne dele. Era o contexto que dava corpo ao corpo dele - a exalação do seu cheiro masculino inundando a casa de segurança; o carinho pesado que somente a mão de um homem pode oferecer; a barba suja de café, que nos dava a certeza de que estávamos, de fato, diante de um macho. Meu pai foi embora e eu o perdoo porque, mais de uma vez, na tentativa de desculpar-se, ele apertou os olhinhos e deixou escapar algo como "foi por amor". Se ele não tivesse batido a porta de casa, naquele sábado, cheio de esperança escorrendo pela boca, talvez eu não tivesse amado tão odiosamente o professor; talvez eu nem tivesse enxergado que o aleijão, às vezes, é justamente o que torna a existência completa - e que o amor, por exemplo, tem disso.

Eu nunca falei ao professor sobre suas mãos, sua boca... ele nunca soube que lembrava, vez ou outra, o meu pai. Agora - depois de tudo dito, tudo escrito e tudo lido - somente agora, o que há de mais miserável, mendigo e íntimo dentro de mim sabe que, quando eu pus os olhos no professor e decidi amá-lo tanto e infernizá-lo tão imensamente, eu não era a jovem cheia de malícia e esperteza, com o sexo abrindo-se em flor - e sim, a criança querendo vingar-se do abandono paterno.

terça-feira, janeiro 06, 2009

O Outro Silêncio

Apavora-me o silêncio. Não o silêncio que também é som, agudo, solto nos ventos da madrugada. Não o silêncio amante que nos põe cansaço, depois sono, depois sonho - o amigo risonho que nos embala. Outro me apavora. Não falo do silêncio da resposta de Deus, pois, ainda que silenciosa, há, em nuvens chumbadas, uma reposta (é só plantar ouvidos no sangue e ouvir, somos todos pequenas partículas Dele). A mudez d'um afeto, por exemplo, grita mais alto que a palavra. Não acho que o silêncio de uma casa abandonada seja silêncio: deve ser a única forma que ela encontrou de dizer a escura dor do abandono. Uma criança, quando olha, não apenas olha - e não é preciso ser alguém dotado de demasiada compaixão, sensibilidade ou fantasia para perceber que alguma coisa ela fala. Esse silêncio, definitivamente, não me preocupa: é de fácil convívio com os homens, é de grandiosa intimidade com o ser, e até nos ajuda a sobreviver. O silêncio do qual tenho medo não há de ser coisa concreta tampouco coisa nomeada... Uns vivem mortos, como fosse a vida um eterno pacto com o amanhã; outros morrem vivos, como fosse a vida um pacto com a eternidade - eu estou ardendo entre essas duas espécies de gente, gorda ou magra demais para nelas caber. Eu estou verdadeiramente calada, como os poucos que carregam dentro de si um vazio de coisa, um silêncio mal-assombrado. Como fosse a vida um confuso pacto com o Nada.

sábado, janeiro 03, 2009

Solúvel

À dura carne
dou pele de correnteza,
ossos de inquietação.
Dissolvo n'água olhos,
cabelos, sexo...
Transformo sangue em rio
(o rio é meu chão).
Afobada, eu vou!
Para onde?
Vou para o jamais chegar
- ser inundação.