quarta-feira, dezembro 27, 2006

Anticristo

Sabes o que mais me põe medo? Esses teus olhos. Esses olhos que carregam mil garças sedentas de vôo, no céu d'algum lugar que está longe de ser chamado de Paraíso. Esses olhos que beiram o real pecado, e que fortalecem o gozo e antecedem a agonia de todos os pecadores.
Sabes o que mais me põe medo? Essa tua boca. Essa boca que diz e retira o que disse, que mente e cega quem da tua língua prova, embriagando os apóstolos de Cristo do vinho barato que Ele jamais ofertaria aos seus irmãos. Essa tua boca que, junto aos teus olhos, provocam a maior conflagração que a humanidade já viu.
Sabes o que mais me põe medo? Essas tuas mãos. Essas mãos que não se envergonham de passear pelas ruas do meu corpo, desnudas, desvirtuando os homens de bem e corrompendo todos os meninos virginais que elas encontram pelo caminho. Essas mãos que, sem hora e sem bússola, terminam por chegar à casa do delírio, inaugurada no momento de sua chegada. Essas mãos que, junto à tua boca e aos teus olhos, provocam a maior conflagração que a humanidade já viu.
E, de tanto temer, eu tenho a força: o pedaço de carne que és, desmistificando qualquer doutrina espiritual e transformando este pobre ser humano que sou em uma orgia vulgar de corpos nus, fazendo de mim um revolucionário de fantasia solta, um Grande, que descobriu e fundou, quase sem querer, a maior e mais nova religião de todos os tempos, chamada Amor.

quarta-feira, dezembro 20, 2006

Ninho.

A vida longe de casa é música.
Fui cuspida, em nota grave, pelo tempo,
Mas deixei o pássaro sem mim.
Pássaro ferido voa baixinho.
Eu feri o pássaro quando deixei o ninho.

A vida longe de casa é poesia.
Eu despenava o pássaro,
O verso me valia.
E o pássaro, já fraco, me beijava e ardia.
Eu provocava uma segunda guerra fria.

A vida longe de casa é ilusão.
Desejo que todas as portas se abram,
Suplico por rios de perdão.
Qual filho se encontra longe do ventre?
A vida longe do pássaro não é vida não.


Para minha Mãe, Minha Casa; Deca.

terça-feira, dezembro 12, 2006

Dois Filhos.

Estou grávida de gêmeos.

Enquanto um balbucia,
o outro é Deus no juízo final.
Enquanto um me assopra a nuca,
o outro me morde, violentamente,
as paredes do útero.
Enquanto um dá-me a fome,
o outro se alimenta de mim.
Enquanto um me preenche,
o outro me cava um buraco.
Enquanto um me acovarda,
o outro me faz cônjuge da Senhora Força.

A paixão é
ter dois filhos imaginários
habitando em cambalhotas
a pacata vida do ventre.

sexta-feira, dezembro 08, 2006

Excêntrico.

A fruta mais rara
do galho mais alto;
o galho mais alto
da árvore mais velha;
a árvore mais velha
do quintal mais esquecido;
o quintal mais esquecido
da casa mais escura;
a casa mais escura
da vizinha mais estranha;
a vizinha mais estranha
da seita mais louca;
a seita mais louca
da crença mais antiga;
a crença mais antiga
do homem mais santo;
o homem mais santo
do céu mais alto;
o céu mais alto
da vida mais pássaro;
a vida mais pássaro
do ninho menos cristão.

Um poema:
pedaço de coisa excêntrica
na minha mão.

quarta-feira, dezembro 06, 2006

O bicho.

O dia amanheceu gostoso. Cíntia era uma criança pálida que havia adormecido ao meu lado sem lembrar da vida. Sonhamos um mesmo sonho sujo, eu e ela, sonho de quem adormece esquecido e acorda pálido num dia gostosamente amanhecido. Aquele quarto tinha um cheiro audacioso de lixo e luxo; cheiro de quem gozou a noite inteira de prazeres obscenos. Eu me negava a transportar para qualquer coisa que transcendesse a carne. Na verdade, eu nunca quis ser mira de cupido morno. Preferia viver pragmático e cético a ter a alma dilacerada. Eu nunca acreditei em sentimentos brutos, e Cíntia era mais uma jovem selvagem que sussurrava frases de efeito no meu ouvido e me ascendia os pêlos.
Mas o dia amanheceu gostoso como nunca havia amanhecido, visto pelos meus olhos ateus, da janela de um hotel cinco estrelas da minha deliciosa Zona Sul. E isso não fez diferença alguma na forma como Cíntia foi olhada por mim aquela manhã, em relação as tantas outras jovens selvagens da minha vida.
As conversas do 'dia seguinte' sempre se desenrolaram muito friamente e eu sempre ignorei o sol lindo das manhãs recifenses. Não por falta de sensibilidade, mas por excesso de medo do bicho feio chamado Amor que povoava o meu inconsciente.
Ficamos deitados, eu e Cíntia, esperando a coragem de desfazer aquela bagunça chegar. Mas ela não chegava, e mesmo assim, eu ía ficando tranqüilo, como se no fundo soubesse que, mais cedo ou mais tarde, alguém chegaria para pôr tudo em seu devido lugar.
De repente, o barulho de alguém batendo à porta. Levantei-me da cama devagar, a preguiça sempre foi minha pior inimiga e sempre esteve presente. Preguiça de deixar a cama, preguiça de andar, preguiça de correr atrás da paixão. Abri a porta como quem carrega uma cruz nas costas, e uma moça, uma arrumadeira, me fitou sorrindo. Com os olhos arregalhados de quem espera reação e a boca frouxa de quem acha graça na vida, ela disse:
- Bom dia, meu nome é Amor.
Ele havia chegado. E, acreditem, não era um bicho tão feio assim.

terça-feira, dezembro 05, 2006

Transe, Poema, Terra.



Apostei no amor
Ele falhou
Comigo e com a nação
Do meu submundo de utopias

Apostei na misericórdia
Ela falhou
Comigo e com todos aqueles
Que me ardiam os olhos

Apostei na ilusão
Mas a ilusão é espírito!
E é o espírito
Que alardeia as minhas teias
E faz nascer em mim
As mãos de aço

O coração não é de pedra
Eu apostei no coração
O coração me traiu sem perdão

Agora eu não tenho mais em que apostar
Eu não enxergo solução
A não ser a violência
Revolucionária suicida



Homenagem à Terra em Transe, de Glauber Rocha.

Retrato.

Para fora de mim o luxo se vai
Não quero as paredes que aprisionam
Nem a saudável vida pacata
Minha princesa está morta

Pouco me importa o preço do vinho
É somente a embriaguez que me vale
Estou árvore: raízes no chão
Estou longe da vida e vizinho da carne

Eu sou vermelha até a alma
Vermelho-drama, vermelho-rua, vermelho-sangue
Aonde encontro as pernas
E a coragem de ser quem eu sou?



Redação baseada no poema "Retrato" de Cecília Meirelles.

domingo, dezembro 03, 2006

Eduardo e Mônica (quarta-feira de cinzas).

Ele tinha um cabelo engraçado. Não conheci seus outros pêlos, mas entendi que habitei seu espaço e vasculhei as gavetas de sua alma. Chamava-se Eduardo e tinha um jeito de querer bem. O frio não me acalmava. Talvez eu sentisse medo de morrer de amor, o inverno tem dessas coisas. Um cigarro aceso à tardinha, e suas mãos geladas passeando pela minha carne anoitecida.
- Acorda, carne! Acorda, carne! Vem provar da criança desconhecida.
Ele não sabia, mas me machucava muito. Machucava-me sempre, amiúde. Se me fitava, era dor rápida. Se me mordia, sangrava. Se me beijava, ardia. Eu lhe ensinava a viver? Mesmo co'as unhas vermelhas, a pele já muito mastigada, tinta no cabelo, eu não ensinava nada. E aprendi a chorar de saudade.
- Mônica, você é mulher, as mulheres destroem.
- Eduardo, diante de um homem, as mulheres se roem.
A fraqueza subia e descia nas minhas entranhas. Eu era uma espécie de elevador para os sentimentos mais brutos.
- Eduardo, preciso comprar cigarros.
- Mônica, preciso ir embora.
Um soco no estômago.
- Tem certeza?
- Sim, amanhã eu tenho aula.
Eu já havia esquecido que estava amando uma criança.
A despedida seguiu o mesmo ritmo da grande São Paulo: não nos olhamos fundo, não nos comemos muito, não valsamos. E os seus passos sumiram naquela esquina escura.
Atravessei a rua.
- Quanto custa um maço?
- Dois e trinta, senhora.
Mentira do moço. Tive de dar meu sangue para ter novamente o gosto do beijo esfumaçado. E dei.
Meu peito dilacerou todo o resto, e viveu uma quarta-feira de cinzas. Tentei rasgar a fantasia, parar o frevo, esquecer o encantamento. Mas Eduardo não saiu de mim, permaneceu do mesmo jeito: falando coisas belas, fingindo-se de tonto, achando que eu era o maestro.
Até hoje ele diz que eu puxo o bloco; que dança conforme a minha música. O que ele não sabe é que a minha música se dá conforme a dança dele.



para Vitor.

Infinito

O amor se debruçou na janela e disse-me:
" - Sente-me, Clarice, como rosa pronta para a colheita.
Escancara o teu peito e não me deixa dormir".

Senti demais;
Colhi não só as rosas;
Escancarei também a alma;
Passei a perna no sono.

O amor abriu as portas da sua casa e disse-me:
" - Entra, Clarice, sem muito pudor.
Rouba-me o sal e o açúcar.
Injeta-me em ti, como droga barata,
E alimenta-me, como feto a luzir".

Entrei feito moça devassa;
Roubei-lhe o sal, o açúcar e o fel;
Injetei-o, cheirei-o: overdose em mim;
Dei pão, dei leite: nutri.

Ó, Senhores, amei infinito!
Exagerei, definhei, morri.