sábado, fevereiro 20, 2010

O ESPELHO


Eu estava presa ao calor das horas. Tudo em mim tinha vinte anos de idade. Eu brincava acorrentada aos instantes. Um instante nunca é novo, como alguma coisa que, quando se dá por vista, já se foi.

Éramos cúmplices, eu e o tempo, mas cães raivosos e inimigos. “Zombe do meu umbigo, seu velho, eu sei, eu sei: ele parece uma gruta de pecados onde dançam anjos decaídos” – eu lhe dizia. “Vamos, ria dos meus olhos rasgados, única herança verdadeiramente imutável deixada pelo meu pai; única estrutura inabalável construída por ele. Podes rir: és pai de todos os homens e, no entanto, és mau e pouco sabes sobre paternidade, olhos, coisas que não se destroem”.

E um verão inteiro flamejava em minha carne. E a cor desse verão fundia-se à minha pele. E os meus pêlos acordavam e os meus mamilos diziam ao tempo: “Tenho vinte anos de idade, velho rabugento... sou nova, tenho estradas curvilíneas no corpo e um largo sorriso. Tenho dentes brancos que mordem o travesseiro enquanto eu me incendeio”.

Eu não tinha fé. Se me envergonhava a idéia de não precisar de Deus? Jamais: era tão imensa a minha juventude, que eu me bastava. E por não acreditar em coisa alguma que estivesse fora de mim, iniciei essa luta contra o tempo, e mergulhei na vermelhidão de minhas hemácias, com a autoridade de que os fracos, para parecerem fortes, fantasiam-se.

Eu era fraca e não sabia. Pequena e não sabia. Um dia eu apodreceria tanto e ficaria tão podre que seria o banquete de todos os vermes. Um dia eu seria mais velha que a avó da avó da avó da minha avó, e então essa vida de alegrias superficiais e brutas, essa vida de vinte anos de idade, findaria. Mas naquele dia, eu quis mostrar ao tempo, diante do espelho, que eu era infinita. E o tempo nada me disse - numa jogada de mestre, silenciosamente, simplesmente passou.