domingo, março 22, 2009

Virginia

Não espere que eu me mova, pois já nasci imóvel. Nasci sem choro, co'a goela obstruída, o estômago embrulhado, os olhos paralisados no infinito. Lavo o rosto às seis e trinta da manhã, todos os dias. A água escorre pelo meu pescoço, peitos, ventre - meus olhos fechados e a água escorrendo; eu escorrendo com a água. Poucos momentos são tão preciosos para mim quanto aquele em que eu lavo o rosto. Sinto-me líquida, imagino-me indo embora pelo ralo, aproximo-me com muito amor e dedicação daquilo que me fascina desde o dia do meu nascimento: o fim. Sou louca, meu Deus, sou louca. Mas admiro a minha coragem - quantos têm a impetuosidade de atirar-se no escuro da vida e adorar a morte como quem beija a boca do desconhecido? quantos têm a ousadia de admitir, diante do corpo de Deus, que veio ao mundo para ser uma florzinha murcha nas mãos de um latifundiário? Salivo miséria e não cuspo. Faço questão de saboreá-la como fosse a champagne mais cara do mundo. A miséria borbulha em minha boca, e eu não desejo mais que o direito de ser miseravelmente borbulhante. O que eu sinto não tem explicação. Aproxima-se muito do que chamam de 'vazio', mas ainda não o é. É mais além, mais dentro que o espírito, e no entanto consegue se tornar visível aos olhos de qualquer um - basta que se olhe as cicatrizes em meu braço, a cabeça raspada, o sangue no travesseiro. Passei a vida toda tentando descobrir a minha melhor maneira de morrer. Hoje eu sei que a minha melhor maneira de morrer foi ir vivendo.