domingo, setembro 30, 2007

Qualquer Coisa

Olhei tua barriga
- uma vontade de caber ali dentro...
Quero ser o teu sofrimento;
desejo ser o teu parto.
Quando pego teu revólver e me mato,
é na esperança de ter teu afago.
Um afago bandido, eu sei,
mas ainda assim um afago
- de braços mornos, passos largos.
Eu quero ser o que te fere e cansa,
mas que não abandonas nunca - esta criança!
que, no fundo, quer teu sorriso
como abrigo
e tua lágrima
como descoberta.
Eu quero ser tua ferida aberta.
Eu quero ser teu filho indo embora,
batendo a porta, desajustando a casa;
morando longe, num lugar cheirando a lixo.
Eu quero ser teu bicho
- teu lobo sedento e pálido.
Mas se não quiseres ser, assim,
meu namorado,
eu posso ser, assim,
irmã abandonada e nua.
Eu faço qualquer coisa
para ter em mim
qualquer coisa de tua.

segunda-feira, setembro 24, 2007

Quase Nada

Quase nada cabe em mim.
Não fosse a pequenez
de minha esperança,
nada caberia. Mesmo.


Eu sou apenas a criança feia
debruçada na janela
assistindo a imensidão do mundo
- imensamente grande para ela!
Com seu corpo pequenino,
suas mãos trêmulas,
a criança emenda um balé de espera.
E vive somente para que,
um dia, talvez,
alguma coisa consiga adentrá-la
- nem que seja o olhar de um cão.
E ela cai e levanta;
se perde nos labirintos d'alma
e se encontra.
E morde os dedos,
fuma um cigarro,
corre com os lobos em círculos,
luta, fere, cansa
- mas ainda não cresce, não adianta.
E ela tenta...
C'os olhos cheios de dor
ela agüenta!
Com o sertão rachando a garganta
ela suporta!
Se rasga e se dana,
chora cachoeiras esta criança.
De repente, de tanta briga,
ela estica.
Elástica e cruel ela cresce
e torna-se uma coisa assim absurda:
maior que a fome,
maior que o amor,
maior que Deus.
E o mundo, em sua palma da mão,
não passa de uma bolinha de gude.
Eu sou apenas a criança feia
que cresceu.


Não caibo em quase nada.
Não fosse a imensidão
de minha poesia,
em nada eu caberia. Mesmo.

terça-feira, setembro 18, 2007

Instante de Morte

Morde-me o instante
em que eu te vejo beijar
o ventre de outra mulher;
os pés; os cabelos; os danos
causados por essa mulher
- como se a felicidade fosse
jogar-se nos abismos
dessa mulher.
Crava-me as unhas o instante
em que eu te vejo chorar
a traição de outra mulher;
com teu coração
numa ligeirice harmônica
por outra mulher;
transferindo o mundo
para as feridas abertas
por essa mulher.
Aborta-me um pedaço o instante
em que eu te vejo sendo levado
pela mão de outra mulher.
Uma mulher talvez igual a mim
- bem pálida; meio flácida;
um tanto ácida; uma mulher
risonha; com uma graça
de onde há beleza oculta;
forte; grávida de si -,
talvez não.
Soca-me o instante
em que eu te vejo contemplar
a existência de outra mulher.
Uma mulher talvez igual a mim
- talvez igual a todas -,
que mora Perto Do Coração Selvagem
e não sou eu.
Mata-me o instante que me grita
que não basta eu ser eu
nesta vida.

domingo, setembro 02, 2007

A Coisa (ou Os Meus Dozes Anos)

Agora eu finjo que os papéis estão trocados
- És tu a princesa presa
na torre mais alta da carne camuflada.
Não. Percebo que o tempo não cura nada.
Qual Deus capaz de destruir o sonho
de uma criança afobada?
Esse Deus de quatro séculos
não é maior do que eu posso ser.
Enxergo o desejo como uma coisa maciça e violenta
que levo nas mãos
- Posso embalá-la num sono profundo e longo,
mas não posso nunca, jamais, matá-la.
Agora eu finjo que persigo o homem grande
que me perseguia
- Tu, tu fantasiado
de tudo que eu sempre quis ser
e agora finjo que sou.
Escuta, querido, a matemática está certa
quando diz que a ordem dos fatores
não altera o resultado
- Fumo para me proteger,
bebo para me enganar.
A verdade é que eu não matei os meus doze anos;
os meus doze anos é que estão me matando.