sábado, outubro 03, 2009

O Fantasma

Nosso amor morreu recém-nascido.
Ouço a escuríssima canção dos ventos:
a Marcha Fúnebre lamentando o meu lamento.
A vagina da mãe chorando, ainda sangrenta do parto.
O câncer no peito do pai
- medalha concebida pelo sofrimento.
Nosso amor se foi recém-chegado.
Um amor-menino: nossa pequenina desgraça.
As flores no túmulo
- o túmulo que é berço -
e a voz de um deus, lá longe, dizendo "tudo passa".
Nosso amor: germe que não germinou.
A mãe delira em febre, o pai entrega-se à cachaça.
Nosso amor: coisa que nunca coisou.
Morta, essa criança nos visita;
pálida, essa criança nos abraça.

sábado, setembro 12, 2009

"E ASSIM CAMINHA A TERCEIRA IDADE..."

Palavra do Autor

Para escrever o espetáculo "E ASSIM CAMINHA A TERCEIRA IDADE...", eu - tomada pela coragem cega que os 19 anos concedem - precisei mergulhar nesse mar indecifrável que é o ser humano. Sem dúvida, trata-se de uma empreitada perigosa, pois quando mergulhamos no desconhecido, nunca sabemos ao certo o que iremos encontrar. Em contrapartida, o mergulho se faz necessário para que saibamos que, por maior que seja o nosso desejo de compreender e dar sentido exato à existência, algum pedaço de vida - justamente o que chamamos de mistério - sempre nos escapará.


Foi com o intuito de preservar o que há de mais misterioso dentro e fora do homem, que aceitei o convite e abracei carinhosamente este projeto, consciente de minha responsabilidade - eu, até então uma autora inédita, estaria, de fato, diante de grandes artistas! De um lado, Pedro Oliveira: o Diretor maravilhosamente visceral. Do outro, a minha palavra - que até então havia sido dedicada somente à literatura - na voz e no corpo da 1ª Dama do Teatro Pernambucano: Geninha da Rosa Borges.


"E ASSIM CAMINHA A TERCEIRA IDADE..." poderia ter sido escrito por qualquer um de nós, pois tratando-se do último suspiro de vida de uma mulher comum, e tendo como argumento um dos mais formidáveis poemas de Charles Chaplin, é um espetáculo que revela o sentimento universal - embora deixe claro que cada vida é uma experiência única - e que pretende resgatar a humanidade perdida dentro de nós.


(Amanda Moraes)



PRLM de Melo Produções apresenta:


Geninha da Rosa Borges em

"E ASSIM CAMINHA A TERCEIRA IDADE..."


Direção: Pedro Oliveira

Texto: Amanda Moraes


Dia 22 de setembro de 2009,

no Teatro de Santa Isabel,

às 21h.


Confira no youtube Geninha da Rosa Borges no Programa do Jô. Atriz fala de sua carreira e de seu novo espetáculo.

domingo, agosto 16, 2009

O Roedor

Você, solto dentro de mim,
feito um bicho.
Você me roendo a cor dos olhos,
sim, e também os mamilos
- o leite azedo que jorra dos mamilos.

Você me roendo a música clássica
que o coração executa.

Você roendo os ruídos da minha festa,
a fogueira na qual me ardo,
a lama nos meus sapatos,
o meu beijo de morte.

Roendo também a minha sorte.

Você me roendo o cetim da roupa,
os dias sangrentos, as noites úmidas,
a triste espera por um milagre,
o pão, a poesia, os homens, o Deus.

A sua língua roendo a minha linguagem,

os dentes afiados do meu cão,
minha sombra, meu pecado, minha redenção,
você roendo você - que também é parte minha.

Feito um bicho que rói
e também ilumina,
você vai me roendo
e vai me iluminando:

tornando cheio o vazio que fica
- dando à minha miséria
a grandeza de se saber miserável.

quinta-feira, julho 16, 2009

A Bruxa

Impuseram-me a fogueira:
Disseram-me suja, sombria, feiticeira.

Incendiaram-me o sexo
E eu estou morrendo:
Mas é de vida que eu morro,
Eu sofro mas sofro ardendo!

No fogo sofre, morre e arde
A mulher que não é covarde;
A mulher que não inventa o espírito
Para justificar a carne.

domingo, junho 14, 2009

CARTA AO FUTURO AMANTE

Recife, treze de junho de 1989
Querido Outro,


Ontem à noite, pouco antes de adormecer, eu construí um castelo. Um castelo azul, ou vermelho, ou cor-de-castelo mesmo – já não sei bem. Um altíssimo castelo, iluminado, lindo, onde viveremos amando e, do mais ardente amor, morreremos: com o sangue elegante dos amantes jorrando dos nossos furos, ou feridas, ou sussurros –já não sei bem. O meu único medo era o de porventura sermos descobertos em nossa liberdade, por isso, cuidadosamente, tratei de construir um castelo oculto; solto dentro da noite secreta; perdido na mata inviolável do ser. Um castelo selvagem, cuja porta nos devorará até que nós devoraremos não somente as portas, mas também janelas e paredes e vidraças – nós: famintos e ávidos de mais amor, Querido, já pensou? Dentro desse Novo Mundo – a que prefiro, carinhosamente, chamar de castelo – dentro desse Novo Mundo, nós correremos perigo por amar demais e, justamente por amar tanto, também seremos perigosos: fuçando um pouco mais o imaginário, posso nos ver imensos, temidos pela mobília, quadros, escadarias, tudo. E nós, tomados pelo habitual sadismo dos amantes, debocharemos da vida, equilibristas, vagabundos, animais. Eu serei a mulherzinha: nua, fértil, liberta; você será o macho: silencioso, peludo, feroz – nós dois, juntos, seremos uma única criatura úmida, enquanto o sentimento, essa força maior, será o nosso criador. Às vezes nos possuirá, de súbito, aquela vontade natural de destruir tudo e pôr à baixo o castelo, mas não faz mal: resistiremos heroicamente, e aproveitaremos a fúria para nos atirar um contra o outro, ou entrar um no outro, ou morar um no outro – já não sei bem. Aos domingos, sairemos para brincar no jardim: você dará um jeito qualquer de adivinhar o meu estado de espírito e enfiará uma florzinha murcha entre os meus cabelos; nós chuparemos frutas cítricas até que não lhes sobre nem mesmo o caroço; cavalgaremos leões, ou onças, ou nós mesmos. Viveremos dentro da célula-mãe das coisas, seremos matéria-prima. Querido, acredite: com essas mãos de velha e esse fôlego cansado – a partir dessa fina matéria de vida que me resta – eu construí um castelo! Um castelo, ou um edifício, ou mesmo uma modesta casinha – já não sei bem. O que eu sei é que, apaixonadamente, ergui paredes e construí a nossa morada. Agora só me resta construir você, Querido.

sábado, maio 30, 2009

Violência

Um dia,
uma criança me disse
que a cor da violência
era escura
- escrevi negro,
sem atadura
(Há muitas possibilidades
de escrita
- eu escolho sempre
aquela que grita).

segunda-feira, maio 25, 2009

Falso Brilhante

Um dia, à tardinha,
se Deus me puser forças,
hei de escrever um poema.
Um poema fraco. Verdadeiro,
desses em que a gente se ilumina
- como se, ao bem escrevê-lo,
eu bebesse o sangue dos artistas.
Com a palavra risonha,
escreverei raso, escreverei bonito.
E escreverei fácil:
o verbo faceiro no lugar do grito.
Prometo escrever algo heróico:
falarei sobre guerras vencidas,
flores desabrochadas sob o sol,
amantes bem-aventurados
(benditos sejam os burgueses apaixonados)!
Hei de ser aquela que tem paz,
aquela que traz luz,
aquela que alimenta-se da fama.
Hei de escrever um poema são,
metricamente perfeito,
que rasgue a mortalha e rejeite a lama.
Hei de ir exatamente por aí:
estrada ladrilhada com brilhantes,
por onde o meu amor passa,
onde árvores frondosas adornam a paisagem,
onde a existência é rica,
e onde os passos de um homem não são
nada mais que os passos de um homem.
Uma tarde qualquer - eu prometo -,
se Deus me puser forças, mas hoje não!
Hoje sou escuríssimo coração.
Um dia serei a poetinha que desejam,
e gargalharei a vida, reprimida,
como quem esconde, na barriga,
o desespero.

quarta-feira, maio 06, 2009

O Parto

Escrever
É como estar habitada
E, num berro, parir.
Primeiro eu sinto
Que tenho tanto a dizer,
Depois eu digo
Que tenho tanto a sentir.

quinta-feira, abril 30, 2009

Amor

Eu, muda e estática, assistia - em transe de amor - um dos maiores deslumbramentos de toda a minha juventude: o vento da manhã balançando com violência a folhagem do pé-de-alguma-coisa que havia na casa dos meus avós.

O pé era verdinho-verdinho, e tinha pouco mais de um metro e meio de altura. O caminho que o vento fazia até chegar e bater com força nele, eu não sei; mas sei que quando, enfim, chegava, o meu coração se enchia de uma liberdade esquisita; liberdade cujo maior desejo era o de escravizar os sentidos da gente. Quanto mais livre eu estava - em assistir o vento espancando a folhagem -, mais aprisionada a esse acontecimento eu permanecia: havia liberdade mas não havia libertação.

Era domingo - eu lembro - e jamais houvera tamanha doçura em meu corpo quanto naquele domingo ventilado. Pensando bem, fuçando com coragem e profundidade minha memória emotiva, não era propriamente a doçura o que residia em mim, e, sim, um amontoado de diferentes alegrias, uma por cima da outra - assim mesmo bagunçado. Era uma confusão que, de tão alegre, produzia em minha boca uma saliva adocicada. Eu confesso que não entendia o por quê d'eu estar ali, defronte a planta, paralisada em contemplação; não compreendia o por quê d'eu, repentinamente, insistir em dar tamanha importância àquilo; mas sabia exatamente quanto poder exercia sobre mim aquela descoberta.

De fato, o meu corpo estava sem ação. Nada funcionava direito - pernas quietinhas, braços parados entre as coxas, olhos que não piscavam. Mas, lá dentro do meu íntimo, no lugar que pode-se chamar também de "entranhas", o mundo estava em festa: escandalosamente, havia o reboliço de alma. Eu inspirava fundo e expirava largo, numa espécie de meditação (alguém que me visse naquele momento na certa pensaria que eu estava tomada por uma calmaria santa, mas a verdade é que eu me aproximava, cada vez mais, de ser a velha do asilo: por fora, a sanidade; por dentro, o delírio)...

...E amor: também era o que eu sentia. Um amor profundo e absoluto pelos ventos, pelas plantas, por mim. Sim, amor por mim e sobretudo pela vida que me foi dada, e a certeza inconsciente de sua existência. Éramos todos amantes: o vento amava as plantas e nelas tocava com força como forma de demonstrar o afeto; as plantas amavam o vento e por ele bailavam em frenesi. Eu talvez amasse aquilo tudo enquanto aquilo tudo me amava e revelava em mim uma beleza até então desconhecida. Tudo era misteriosamente belo e eu tinha a sensação de estar presenciando a natureza comungando com a natureza.

Eu, muda e estática, via um homem. De fato, o meu corpo estava sem ação. Dentro de mim, uma confusão que, de tão alegre, produzia em minha boca uma saliva adocicada. Amor: era o que eu sentia. Amor por mim e sobretudo pela vida que me foi dada, e a certeza inconsciente de sua existência. Eu me aproximava, cada vez mais, de ser a velha do asilo: por fora, a sanidade; por dentro, o delírio. Havia liberdade mas não havia libertação; uma liberdade esquisita cujo maior desejo era o de escravizar os sentidos da gente. Tudo era misteriosamente belo e eu tinha a sensação de estar presenciando a natureza comungando com a natureza. Eu confesso que não entendia o por quê d'eu estar ali, defronte ao homem, paralisada em contemplação; não compreendia o por quê d'eu, repentinamente, insistir em dar tamanha importância àquilo; mas sabia - e sempre soubera - reconhecer um grande acontecimento.

Engraçado: de repente lembrei-me de um domingo na casa dos meus avós...

sexta-feira, abril 24, 2009

A Descoberta

Pare de sorrir, por favor. Eu odeio quando você sorri - o seu semblante vulgariza-se e tudo fica esteticamente feio (sua boca, quando alegre, amarga); seu corpo todo se balança, sua barriga tambem gargalha, você entra em um transe patético que casa perfeitamente com o balé esquisito que os seus pés emendam; o som da sua risada me dá nos nervos (apesar de genuinamente feliz, eu sei, a música que você canta quando ri soa forçada). Eu tenho vontade de vomitar quando penso nas roupas que você veste, nos sapatos que você calça, nos assessórios que você usa: tudo que compõe a sua imagem me deixa paralisada de tanto ódio. Eu te odeio com tanta força, que seria em vão a tentativa de qualquer movimento contrário - o ódio transcende a minha própria existência (o ódio é o meu filho indesejado que alimenta-se do meu espírito, vai ficando bruto até o dia de sua explosão. Parido, ele cresce e torna-se imenso, atingindo involuntariamente o além-mim. Fica maior que eu, meu odiozinho, ganha vida própria, independe das minhas vontades mas... mas ainda é meu). Enquanto os poetas tecem, com muito cuidado, a palavra que dará corpo a sua louca paixão, eu não - eu derramo sobre o papel o que há de pior em mim; eu sujo a vida de ódio mortal. E por você, confesso, não sei sentir outra coisa que não este sórdido sentimento de uma baixeza quase sádica. Eu sou cuel porque te odeio, ou te odeio porque sou cruel? Já não sei mais onde começa e onde termina a minha antipatia por você, pois quando te vejo caminhar tranquilo, bocejando - como se tivesse demasiada fé no futuro -, eu me desorganizo toda e os meus pedaços se espalham sobre a calçada e eu me transformo em pura sucata de natureza indesejável. Quando eu te vejo, eu sou O Monstro, pois te odeio verdadeiramente; pois sinto absurda necessidade de te mastigar e te engolir todo, como nas histórias de fantasia. Sinto vontade de comer o seu ser para que você não tenha mais existência; para que você morra; para que você não habite mais o mesmo espaço que eu e para que não provoque mais em mim essa ânsia de vômito horrível; essa indigestão fatal. São sete e meia da manhã e você já vem fechar a janela e me dizer "boa noite" com aquela voz grossa de homem maduro e aquele jeito ridículo de quem tudo sabe sobre a vida. Cá pra nós: eu nunca entendi como essa sua calmaria de entidade espiritual consegue ser tão detestável. Você chega e me diz algo como "tenha calma", e não percebe que é justamente a minha inquietação que me dá forças para continuar, enquanto você fica tão pequeno e mole e líquido e a sua vida toda se resume em ser apenas aquele vazamento incômodo na cozinha. Eu te odeio sem saber muito a respeito do ódio, sem o menor conhecimento acadêmico sobre o assunto: em minhas entranhas ele nasce inconsciente do seu poder, como nasce, inconsciente de sua beleza, uma florzinha. E em mim, a cada vez que te imagino, ele cresce alguns centímetros, com a liberdade de crescer infinitamente, mas negrinho-negrinho, escravizado por ele mesmo. O meu ódio por você é o meu veneno, e, um dia - eu sei - um dia eu hei de morrer envenenada de mim. Às vezes eu paro durante longos instantes e observo esse vão que existe entre eu e você, esse bolo quase sólido que se chama mistério... Então, suada e exausta, eu me submeto à mais estranha das descobertas: há o ódio porque há o amor.

domingo, abril 12, 2009

Vocês (Urina e Mel)

Com esse seu jeitinho manso, você vai pouco a pouco esboçando a sua mais escura violência, não é? Talvez seja a doçura de seus modos um truque para alcançar a glória de viver amargamente. É tão misteriosa a forma com a qual sua natureza se dá, como se a você tivesse sido entregue o poder da labuta sem dor. Ou da dor sem labuta – já não sei mais. O fato é que eu vejo você trabalhando arduamente dentro de si – os braços d’alma preparando, com muitíssimo esforço, as terras para o plantio. Ao invés de ingênuo, eu diria que você é um homenzinho malicioso, às vezes até cruel. Ao invés de malicioso, eu diria que você é um homenzinho absurdamente ingênuo, também às vezes até cruel. De qualquer forma, no final das contas, o que, com força, sobrevive em você é somente a crueldade. Você não é mau... mas, enquanto os outros escondem debaixo da língua a miséria que salivam – sim, todos salivam miséria -, você cospe tudo numa taça de cristal, exibe o líquido com orgulho e depois bebe! bebe até a última gota, e isso é ser cruel, pois é feito de uma felicidade ordinária. Por sinal... você tem mania de engolir as coisas até a última gota, não é? Eu percebo: quando você está tomando café às cinco e quarenta e cinco da tarde, por exemplo, não há sossego enquanto não sentir a derradeira gotícula descendo goela abaixo. É como se a vida para você só tivesse valor dentro da morte das coisas. Veja só: não é na morte do café que o seu coração se enche de alegria? Pois bem, é exatamente no fim de tudo que o seu espírito encontra a paz. Para que uma porção de coisas dentro de você inflame de tanta vida – eu percebo –, é necessário que a morte abrace uma porção de outras coisas. Não falo apenas do café, mas também de mim: você também me absorve até a última gota. Para ser mais exata, é o meu túmulo o lugar do seu nascimento. Às vezes eu fico pensando como deve ser cansativa a existência de alguém assim como você, mas depois eu chego a conclusão de que, como não há mal que não se transfigure em bem à uma hora qualquer, qualquer hora dessas você estourará no ar de tanta alegria. Uma alegria súbita, como um susto, mas ainda assim uma alegria, com todas as tonturas que a alegria oferece. Existem muitos de você, eu sei. E você, você, você... você é um bicho selvagem solto na cidade grande. Seu lugar é o caos: é dentro do caos que você se organiza; que você ergue a sua morada. Dentro dessa desordem, você não existe dessa ou daquela maneira... a confusão à você entregaram de forma bruta e, dentro dessa desordem, você simplesmente existe. Eu não ousaria jamais escrever sobre você – eu escrevo você, assim mesmo sem exatidão... apenas co'a liberdade necessária para escrever alguém que traz nas veias urina e mel.




Para Ângelo.


Foto por Jedson Nobre (Dedao)
Ângelo Fábio em "A Moça de Nove Dedos e A Moral Libertina".

quarta-feira, abril 08, 2009


A falta daquilo que chamam de “inspiração” me atordoa. Estou seca. Sinto que me aproximo terrivelmente da morte. Uma morte silenciosa mas não menos bruta e dolorida. Estou com medo dessa velhice precoce, desse delírio impiedoso que é envelhecer o espírito, aos vinte anos de idade, e murchar, murchar, murchar e ir murchando até desaparecer misteriosamente no espaço. Quando não escrevo, minhas mãos ficam engelhadas e pálidas e finas, como uma folha de papel-enrugado. Mal posso usá-las : o mundo e suas coisas me escapam. Meu corpo pesa, talvez seja o peso de uma vida inteira de mistérios, mas isso pouco importa: o fato é que me arrasto feito um bicho sujo pela casa, para lá e para cá, sem saber aonde chegar, o que fazer, que horas são e, sobretudo, quem eu sou. Quando não escrevo, não sei quem sou. Distancio-me da existência que me foi dada, com tanto amor, por Deus. Agarro-me a Ele, mas não adianta – é como se eu ateasse fogo aos documentos que comprovam que, um dia, estive dentro deste mundo delicioso, ardendo e chorando de espanto: bolha de sabão estourando no ar de tanta vida. Um dia fui bolha de sabão; agora, com a dura escassez da palavra, sou somente o pó sobre o armário da sala: sem segredo, porém também sem revelação.

domingo, março 22, 2009

Virginia

Não espere que eu me mova, pois já nasci imóvel. Nasci sem choro, co'a goela obstruída, o estômago embrulhado, os olhos paralisados no infinito. Lavo o rosto às seis e trinta da manhã, todos os dias. A água escorre pelo meu pescoço, peitos, ventre - meus olhos fechados e a água escorrendo; eu escorrendo com a água. Poucos momentos são tão preciosos para mim quanto aquele em que eu lavo o rosto. Sinto-me líquida, imagino-me indo embora pelo ralo, aproximo-me com muito amor e dedicação daquilo que me fascina desde o dia do meu nascimento: o fim. Sou louca, meu Deus, sou louca. Mas admiro a minha coragem - quantos têm a impetuosidade de atirar-se no escuro da vida e adorar a morte como quem beija a boca do desconhecido? quantos têm a ousadia de admitir, diante do corpo de Deus, que veio ao mundo para ser uma florzinha murcha nas mãos de um latifundiário? Salivo miséria e não cuspo. Faço questão de saboreá-la como fosse a champagne mais cara do mundo. A miséria borbulha em minha boca, e eu não desejo mais que o direito de ser miseravelmente borbulhante. O que eu sinto não tem explicação. Aproxima-se muito do que chamam de 'vazio', mas ainda não o é. É mais além, mais dentro que o espírito, e no entanto consegue se tornar visível aos olhos de qualquer um - basta que se olhe as cicatrizes em meu braço, a cabeça raspada, o sangue no travesseiro. Passei a vida toda tentando descobrir a minha melhor maneira de morrer. Hoje eu sei que a minha melhor maneira de morrer foi ir vivendo.

quarta-feira, fevereiro 04, 2009

Meu Segredo

Disseram, num sorriso,
que um dia eu seria presa
por excesso de liberdade.
Talvez quisessem dizer
o que agora eu sinto
- a liberdade apaga
a libertação que eu pinto.

Vês em mim ave que beija céu,
mas não minto:
no fundo, sou escrava
da minha própria vadia
e beijo a boca do inimigo.

Também sou água
(Por fora, pareço escorrer;
mas por dentro, apenas pingo).
Meu segredo:
a liberdade, essa mentira,
costuma aprisionar sorrindo.

segunda-feira, janeiro 26, 2009

Confissão de uma mulher amada

Compreenda as minhas divagações.
Pois vivo,
co'a liquidez com que vivem as mulheres,
solta em tuas veias.
Cambaleio aqui,
cambaleio ali,
e - malandramente - escapulo de ti:
peço que compreendas as noites
imensas que há em mim.

Compreenda se hoje eu faço
do teu corpo o meu lar,
e amanhã engulo, faminta,
as delícias da fuga
(é que algo sem rosto me apavora toda):
defendo-me trazendo à superfície
o Monstro Da Lagoa;
defendo-me tentando distrair o paladar.

Monto em meu próprio dorso, e vou!
Pois temo ser castigo
e, assim, ser castigada...
Me assombra ser o ser amado
- compreenda: não fujo daquilo que és,
mas daquilo que sou ao teu lado.

sexta-feira, janeiro 09, 2009

Romance

"Aurélia" - não gosto do meu nome. Quando pronunciado de forma rápida e cruel, ouve-se "a orelha". Às vezes eu quero me machucar um pouquinho e o pronuncio de forma rápida e cruel para mim mesma, baixinho. Muitas vezes sou cruel comigo e com os outros, mas muito mais comigo porque, quando faço uma maldade para alguém, eu me machuco também. Então sou duplamente cruel e por isso pareço um gigante mas não passo de uma mosquinha sobrevoando um prato de sopa.

Não gosto do meu nome porque não gosto da minha orelha. Ela é toda feita de um defeito gravíssimo: um pedaço que falta. Sinto-me uma aleijada, confusa por não saber ao certo se devo me consertar para que os outros me enxerguem bonita, ou se devo extrair a beleza da falha e defecar sobre a cabeça dos homens. Intimamente, temo a situação em que alguém me pergunte o meu nome, eu responda (por descuido) de forma rápida e cruel e, involuntariamente, a pessoa olhe para a minha orelha e perceba que ela não está inteira. A minha orelha também sou eu... eu não estou inteira. E são pouquíssimas as pessoas que conseguem enxergar que o aleijão, às vezes, é justamente o que torna a existência completa. O amor, por exemplo, tem disso.

Quando eu era jovem e comecei a perceber que havia em minha beleza algum poder misterioso com os homens, vivi um tórrido romance com um professor velho. Eu nunca fui a mais bela da escola, aquela que todos os garotos desejavam possuir, porque eu nunca quis ser. Eu possuo um tipo de beleza que pode ou não se manifestar: é questão de escolha. E eu nunca escolhi dar o ar de minha graça àqueles garotos mau-cheirosos e sardentos. Então era bom mesmo que eles gastassem seus púberes suores com Cecília e Amélia... assim, sobrava-me tempo e espaço para escolher um alvo e fincá-lo, certeiramente, com minha flecha juvenil. Escolhi o professor velho também porque a minha maior arma não eram os cabelos soltos ou as bochechas coradas de sol - a minha maior arma era mesmo a juventude.

Vou tentar falar desse romance porque assim eu me fortaleço um pouco. Lembrar é coisa sagrada, encontra-se as raízes das falhas, como quando descobrimos novos detalhes cada vez em que assistimos ao mesmo filme. A minha pequena história com o professor não tem nada de novo. Muito pelo contrário: sem perceber, obedece rigorosamente ao clássico e é coisa estagnada, como qualquer lugar-comum. Por isso eu peço, do fundo de minha alma, que não dês tanta importância a estas linhas, Caro Leitor, mas que fiques inteiramente a par das minhas duras entrelinhas.

Ele, o tal professor, era um homem muito bonito. E era imenso, pois havia dedicado longos anos de sua vida à sofisticação. Um intelectual? De maneira alguma. Mas um homem que sabia exatamente como conduzir a própria vida ao declínio. Mesmo as quedas do professor haviam sido arquitetadas da melhor maneira, elegantes, como a poesia Romântica. Dava-me aulas de teologia, sabia de cor os mandamentos de Deus, os pecados capitais, mas o que sabia fazer com mais propriedade era mesmo pecar. E atolava-se numa fama violenta que sobrevoava os corredores, descia as escadarias, corria o pátio, até ganhar a imensidão do jardim do colégio. "Ele adora menininhas", comentavam todos. Mas, de todos, apenas eu tinha no corpo a prova viva de que as especulações eram mesmo verdadeiras. Eu era a verdade, em carne-viva, do professor - eu, que no primeiro dia de aula, aos quinze anos de idade, já o tinha como presa fácil. Sua boca e suas mãos eram iguaizinhas as do meu pai - requisito crucial para que eu o elegesse amante.

Estou com ânsias de vômito... deve ser a boca, as mãos do professor. Sim, ele era muito bonito. Tinha pouco mais de quarenta anos de idade, barba e cabelos acinzentados, pele boa, dentadura pronta para exercer o seu papel . O que nos uniu? Conscientemente, o fato d'eu, na presença dele, entrar em contato com a parte absurda da vida da qual eu ainda era terminantemente proibida de provar. Enquanto ele, na minha presença, entrava em contato com a vida que ele pensava ter deixado escapar por entre os dedos. Superficialmente, era isso: ele me invejava profundamente por eu ser jovem, e eu o invejava por ele ser velho. E foi assim, sem medo e com uma vontade mútua e avassaladora de ser o outro, que nós dois pecamos, em cima da mesinha à qual ele se sentava, todas as manhãs, para falar à turma de desinteressados a importância daquilo que é sagrado.

Aquele colégio ensolarado passou a ser a mais doce arena para o nosso amargo combate. Amávamos tanto quanto odiávamos um ao outro. Eu era a prostituta, o horror do professor, pois fazia questão de não saber disfarçar mesmo nas horas de aula. Insinuava-me toda de forma a atingí-lo e deixá-lo desconcertantemente furioso. Muito furioso. Ao final de tudo, pegava-me com rispidez pelo braço, levava-me a um canto qualquer e dizia-me que eu era louca. E eu era louca. Quando ele dizia "louca...", eu sentia a tonturinha de quem se reconhece num insulto. Era tudo verdade e a verdadeira loucura sempre me encheu de uma espécie de medo alegre.

"Se descobrirem, ele será expulso do cargo", dizia-me as minhas coleguinhas. "Pois que seja!", eu respondia. Eu queria exercitar a brutalidade em mim, acabar com a vida de um professor qualquer. De um barbudo qualquer. De um homem qualquer. Eu sempre fui moça frágil demais, e ser assim, violenta, era uma deliciosa maneira de me proteger dessa fragilidade que tanto me atormentava. Mas, não sabia eu (claro), era também o que a denunciava. E o professor, homem maduro e vivido, logo percebeu que, se quisesse, poderia me desarmar e me deixar nuazinha. Mas, como já era de se imaginar, ele não quis - e, não só não me desarmava, como ainda me ensinava a apertar o gatilho e matar. Foi sua opção continuar sendo deliciosamente perturbado por mim. Além de tudo, ele carregava nos olhos a doçura romântica de quem já havia passado da fase da maldade. Eu vomitava e ele devorava o meu vômito, faminto por qualquer pedaço de coisa que viesse de dentro de mim.

Parte de mim sabia que o espetáculo era sórdido e de inegável baixeza. Na intimidade, lá dentro do meu quarto, eu até lambuzava-me de alguma culpa. Mas a outra parte de mim necessitava tanto empurrar o homem velho ladeira abaixo, que a culpa era mesmo reservada aos momentos mais íntimos e neles ficava, trancafiada a sete chaves. Ninguém podia enxergar-me culpada - apenas eu. Para o mundo eu havia de ser a pequena vítima que caiu nas armadilhas de um barbudo, e tudo o que eu fazia contra ele estaria dentro do meu direito à defesa. Era como se eu atacasse o professor antes que ele me atacasse... certa de que, do contrário, eu seria vencida.

Onde estaria o professor neste tempo de agora? Penso que nele não caberia jamais o tempo de agora. Ou ele não caberia no tempo de agora. O fato é que esse homenzinho de ingênua audácia é grande ou pequeno demais para caber na sujeira do mundo de hoje. Ou então é a sujeira do mundo de hoje que é grande demais para caber naquele corpo magro e desajeitado do professor. Quando ele ria, apertava os olhinhos, assim como o meu pai. E esses olhinhos eram tão bons quanto cruéis comigo, pois seriam capazes das maiores barbaridades para depois, apertados, deixar escapar algo como "foi por amor".

Depois que o meu pai foi embora de casa, deixando minha mãe, eu e minha irmã mais nova sozinhas, entendi o significado de um homem na vida de uma mulher. Não era ele que fazia falta... pelo menos não a carne dele. Era o contexto que dava corpo ao corpo dele - a exalação do seu cheiro masculino inundando a casa de segurança; o carinho pesado que somente a mão de um homem pode oferecer; a barba suja de café, que nos dava a certeza de que estávamos, de fato, diante de um macho. Meu pai foi embora e eu o perdoo porque, mais de uma vez, na tentativa de desculpar-se, ele apertou os olhinhos e deixou escapar algo como "foi por amor". Se ele não tivesse batido a porta de casa, naquele sábado, cheio de esperança escorrendo pela boca, talvez eu não tivesse amado tão odiosamente o professor; talvez eu nem tivesse enxergado que o aleijão, às vezes, é justamente o que torna a existência completa - e que o amor, por exemplo, tem disso.

Eu nunca falei ao professor sobre suas mãos, sua boca... ele nunca soube que lembrava, vez ou outra, o meu pai. Agora - depois de tudo dito, tudo escrito e tudo lido - somente agora, o que há de mais miserável, mendigo e íntimo dentro de mim sabe que, quando eu pus os olhos no professor e decidi amá-lo tanto e infernizá-lo tão imensamente, eu não era a jovem cheia de malícia e esperteza, com o sexo abrindo-se em flor - e sim, a criança querendo vingar-se do abandono paterno.

terça-feira, janeiro 06, 2009

O Outro Silêncio

Apavora-me o silêncio. Não o silêncio que também é som, agudo, solto nos ventos da madrugada. Não o silêncio amante que nos põe cansaço, depois sono, depois sonho - o amigo risonho que nos embala. Outro me apavora. Não falo do silêncio da resposta de Deus, pois, ainda que silenciosa, há, em nuvens chumbadas, uma reposta (é só plantar ouvidos no sangue e ouvir, somos todos pequenas partículas Dele). A mudez d'um afeto, por exemplo, grita mais alto que a palavra. Não acho que o silêncio de uma casa abandonada seja silêncio: deve ser a única forma que ela encontrou de dizer a escura dor do abandono. Uma criança, quando olha, não apenas olha - e não é preciso ser alguém dotado de demasiada compaixão, sensibilidade ou fantasia para perceber que alguma coisa ela fala. Esse silêncio, definitivamente, não me preocupa: é de fácil convívio com os homens, é de grandiosa intimidade com o ser, e até nos ajuda a sobreviver. O silêncio do qual tenho medo não há de ser coisa concreta tampouco coisa nomeada... Uns vivem mortos, como fosse a vida um eterno pacto com o amanhã; outros morrem vivos, como fosse a vida um pacto com a eternidade - eu estou ardendo entre essas duas espécies de gente, gorda ou magra demais para nelas caber. Eu estou verdadeiramente calada, como os poucos que carregam dentro de si um vazio de coisa, um silêncio mal-assombrado. Como fosse a vida um confuso pacto com o Nada.

sábado, janeiro 03, 2009

Solúvel

À dura carne
dou pele de correnteza,
ossos de inquietação.
Dissolvo n'água olhos,
cabelos, sexo...
Transformo sangue em rio
(o rio é meu chão).
Afobada, eu vou!
Para onde?
Vou para o jamais chegar
- ser inundação.