quinta-feira, maio 29, 2008

Crime Delicado

Do meu espírito, o veneno
- Chupas não somente a fruta-carne,
Mas também o meu caroço.
Há dura paisagem no que sou
- Florestas densas; denso bosque incolor.
E mesmo a par dos horrores de me ser,
Mergulhas com coragem
Nesta tão somente tua capacidade de me ver.
És assombro para mim. E descoberta:
Reflexo do meu dentro que lateja,
O céu das coisas íntimas
Rasga a lona e lampeja.
Descobrindo-me, tu me matas, como alguém que,
Para decifrar existência, a flor despetala.
E és o único que
- Eu já despetalada; eu suco cítrico -
Enxerga em mim a beleza do que é feio:
Do meu veneno, o espírito.

sexta-feira, maio 23, 2008

A menina e o véu da (in)verdade

Tarde demais: já era como se seu mundo girasse em torno daquele véu. Um véu que escondia, porém revelava muito, como quando alguém cala. Vivia nua, coberta somente por aquele véu transparente - tivera a coragem de poucos, coragem de reconhecer-se como sendo parte fundamental de tudo o que diz respeito a humanidade, e escolhera o véu como instrumento de mostrar ao mundo que era bicho, bicho homem. Ela era matéria de carne e espírito, todos são, mas pouquíssimos - para não dizer nenhum - tiveram essa ânsia de viver e essa imaculada capacidade de desvendar que a existência é realmente indesvendável. Por isso usava o véu, para provar aos seus homens, amigos, parentes que querer decifrar qualquer parte humana é o mesmo que querer extinguir a humanidade - o amor, por exemplo, existe tão longe do nosso entendimento, que criticá-lo seria um ato de extrema burrice.

Ela realmente acreditava nesta forma de viver: expandindo ao máximo seu mundinho medíocre. Ela supunha que tudo o que ela podia tocar era medíocre, pois ela-poder-tocar significava que havia coisas além, intocáveis. E quando se esticava toda e conseguia novamente tocar naquilo que há pouco era intocável, ela, então, tinha a absoluta certeza de que havia sim coisas além, intocáveis. Por isso não suportava que as pessoas andassem com aquele ar ordinariamente feliz, de quem tudo sabe sobre a vida. Não suportava ter de conviver com gente que não se reconhecia bicho, bicho homem. E ainda assim, amava profundamente o outro, com o amor abrangente e inexplicável de quem olha para dentro de si e se ama.

Não é que ela tivesse as respostas para todas as perguntas, muito pelo contrário: ela tinha muitas perguntas e quase nenhuma resposta, como todo mundo. O fato é que ela conseguia enxergar que ter todas as respostas nas mãos é o mesmo que desistir de viver, então não procurava compreender as naturezas, embora reconhecesse que a vontade de se saber a verdade, se é que a verdade existe, é coisa naturalíssima, que também não carece precisão. Pode-se dizer até que ela era a própria pergunta, a pergunta em seu estado mais eufórico para saber a resposta, a resposta que, quando não vinha, fazia com que ela delirasse de uma excêntrica alegria.

Nome, gênero, ordem - para ela tudo isso era a Ditadura Do Ser em seu mais puro estado de cinismo, e entre fazer parte dessa massa ou ser apenas uma expectadora, ela sempre preferiu a segunda opção, já que não lhe foi dado o direito de mudar de mundo cada vez que se sentisse solitária. Afinal, a solidão também é coisa natural do ser humano, e até isso ela sabia compreender e amar. A flor que ela cultivava, flor cujo nome era inexistente, era tão livre, tão livre, que ultrapassava qualquer estado de liberdade. Ela nunca ousou dar-lhe o nome de liberdade porque acreditava que, nomeando, estaria roubando a sua dimensão, como algo que está vazio perde o sentido de vazio quando nomeado - visto que está, sim, cheio de ausência.

Ela era uma moça cruelmente vã, eu diria: veio ao mundo para tornar as coisas menos exatas. E quando alguém lhe perguntava: "Quem é você?", ela apertava os olhos num sorriso e respondia: "Sobre essas questões de ser, não posso dizer muita coisa, embora haja nos instantes de silêncio a possibilidade de adivinhação. Adivinha-me, então: só assim as leis se tornam justas".

domingo, maio 18, 2008

Pedaço de Mim

Defenderei os meus romances até o inevitável instante em que se pronunciará o meu último suspiro. Defenderei sim, pois em meus romances, bebidos sempre até a última gota, tornei-me tão minha, tornei-me tão eu, que, depois de algum tempo, pude perceber que amar profundamente alguém se tornou amar, de uma forma duplamente profunda, a mim mesma. Apaixonar-se é mesmo como se sentir inteira. Quando esta paixão me é recusada - dando-me a impressão de que há, sim, uma parte exilada do corpo -, eu adivinho o segredo: o aleijão é justamente o que torna a existência completa. É assim como a mãe que pariu - Experimentar todas as desgraças do filho, o filho que já não é mais um membro seu, faz dela muito mais mãe do que quando ela o carregava no ventre. Amar é se reconhecer: olhar-se no espelho e enxergar o outro, ou ver no outro o seu reflexo. Todo esse cheiro de loucura que o amor exala é, na verdade, o cheiro do meu dentro borbulhante. Amar é justamente deixar-se borbulhar, deixar-se ser taça de champagne circulando nas mãos dos homens, dos homens maus, com a infinita garantia de que, mesmo sob todas as desventuras, até mesmo quando a morte vier beijar os meus pés, eu continuarei sendo sempre a mulher que ama. Defendendo os meus romances, estarei erguendo a minha própria defesa: os meus romances são o pedaço de mim que eu fantasio de história; o grito sólido de amor pela minha própria pessoa.

domingo, maio 11, 2008

Duo

Paradoxalmete, vou-me construindo, como se eu carregasse em mim peso e leveza, um pouco de patrão e de negrinho. Parte de mim anoitece sóbria, outra parte tem febre e delira - acredito que a vida seja assim mesmo para quem, como eu, mergulha em tudo o que há de natureza humana. Sou sempre duplamente: mulher das cavernas abraçando luzes, senhora das enchentes de vazio, lambendo docemente os rios - sou mulher de lamber as coisas. Um tanto reprimida, outra tanto perdulária. Em meu útero: filhos ardentes; em minha alma: rocha, pedra calcária. E assim, vou-me mostrando, co'a boca orgulhosa pintada de risos e com uma tristeza amarga no olhar: em meu rosto, desenha-se um córrego com duas vertentes: uma boa, outra mar. Tudo me faz sofrer e gozar: a existência, quando não me é rebento, me arrebentar.

domingo, maio 04, 2008

Sou Quando Julieta Desperta

Nada é tão mulher quanto macho sedento em meu interior agora vão. Um dia, fui, deliciosamente, tão dilacerada quanto dilacerante, mas agora, na tentativa diária de poesia, é como se eu vomitasse vácuo; parisse vento. Não sou a substância excêntrica que a feiticeira mistura em seu caldeirão para fazer morrer meninos e meninas: sou exatamente o antídoto; a parte feliz da história; o contraveneno agindo em silêncio. Sou quando Julieta desperta, o amanhecer raso e sóbrio, as garças tranqüilas na beira de um lago. Sou, definitivamente, gravidez psicológica: parto não há. Não há o rebento, não há o rebentar. Até a morte se cansou de mim - eu, que vivo para morrer. A morte não me vem beijar os pés. Eu tento e, embora exista dentro do tentar um instante de esperança em que se tem fé em tudo, não adianta: nada corta, nada treme, nada teme nada, pois não há mais o que temer. Agora é tudo de uma certeza frustrante, como se assim fosse a vida - um simples caminhar pelo parque, sem se perder. Sou peixinho vivendo no aquário pequeno em cima da estante velha da casa da vovó: pedacinho de coisa natural de existência absolutamente decifrável. Não sei mais ser rosa pálida em agonia; não sei ser bicho atropelado, agonizando; não sei ser mãe que perdeu filhos, tampouco sei ser mãe que acabou de ganhar filhos. Não sei ser menina violentada pelo tio, pela moral rígida, pela própria vida. É tudo de uma tranqüilidade quase invisível, de uma felicidade quase mitológica, de uma estabilidade quase irreal. Quero de volta o grito rouco dos poetas, pois hoje tudo o que eu sei ser é pássaro em paz.