quinta-feira, julho 01, 2010

Somente com a voz do que há por dentro,
eu gritei (muda): "Eu preciso aprender o amor".
E tentei. Tentei aprendê-lo nos olhos
- há nos olhos um coração que enxerga mundos -,
mas através deles,
nada além do que eu já sabia sobre horizontes
me foi ensinado.
Tentei aprendê-lo na pele
- há na pele um coração que arde -,
mas através dela,
nada além do que eu já sabia sobre febre
me foi ensinado.
Tentei aprendê-lo no peito
- há no peito um coração que vive em tudo quanto é coisa -,
mas através dele,
nada além do que eu já sabia sobre vida
me foi ensinado.
Teimei em aprendê-lo no ventre:
ainda não aprendi. Porém, misteriosamente,
foi somente no breu do ventre que ele me foi revelado.

sábado, fevereiro 20, 2010

O ESPELHO


Eu estava presa ao calor das horas. Tudo em mim tinha vinte anos de idade. Eu brincava acorrentada aos instantes. Um instante nunca é novo, como alguma coisa que, quando se dá por vista, já se foi.

Éramos cúmplices, eu e o tempo, mas cães raivosos e inimigos. “Zombe do meu umbigo, seu velho, eu sei, eu sei: ele parece uma gruta de pecados onde dançam anjos decaídos” – eu lhe dizia. “Vamos, ria dos meus olhos rasgados, única herança verdadeiramente imutável deixada pelo meu pai; única estrutura inabalável construída por ele. Podes rir: és pai de todos os homens e, no entanto, és mau e pouco sabes sobre paternidade, olhos, coisas que não se destroem”.

E um verão inteiro flamejava em minha carne. E a cor desse verão fundia-se à minha pele. E os meus pêlos acordavam e os meus mamilos diziam ao tempo: “Tenho vinte anos de idade, velho rabugento... sou nova, tenho estradas curvilíneas no corpo e um largo sorriso. Tenho dentes brancos que mordem o travesseiro enquanto eu me incendeio”.

Eu não tinha fé. Se me envergonhava a idéia de não precisar de Deus? Jamais: era tão imensa a minha juventude, que eu me bastava. E por não acreditar em coisa alguma que estivesse fora de mim, iniciei essa luta contra o tempo, e mergulhei na vermelhidão de minhas hemácias, com a autoridade de que os fracos, para parecerem fortes, fantasiam-se.

Eu era fraca e não sabia. Pequena e não sabia. Um dia eu apodreceria tanto e ficaria tão podre que seria o banquete de todos os vermes. Um dia eu seria mais velha que a avó da avó da avó da minha avó, e então essa vida de alegrias superficiais e brutas, essa vida de vinte anos de idade, findaria. Mas naquele dia, eu quis mostrar ao tempo, diante do espelho, que eu era infinita. E o tempo nada me disse - numa jogada de mestre, silenciosamente, simplesmente passou.

sábado, outubro 03, 2009

O Fantasma

Nosso amor morreu recém-nascido.
Ouço a escuríssima canção dos ventos:
a Marcha Fúnebre lamentando o meu lamento.
A vagina da mãe chorando, ainda sangrenta do parto.
O câncer no peito do pai
- medalha concebida pelo sofrimento.
Nosso amor se foi recém-chegado.
Um amor-menino: nossa pequenina desgraça.
As flores no túmulo
- o túmulo que é berço -
e a voz de um deus, lá longe, dizendo "tudo passa".
Nosso amor: germe que não germinou.
A mãe delira em febre, o pai entrega-se à cachaça.
Nosso amor: coisa que nunca coisou.
Morta, essa criança nos visita;
pálida, essa criança nos abraça.

sábado, setembro 12, 2009

"E ASSIM CAMINHA A TERCEIRA IDADE..."

Palavra do Autor

Para escrever o espetáculo "E ASSIM CAMINHA A TERCEIRA IDADE...", eu - tomada pela coragem cega que os 19 anos concedem - precisei mergulhar nesse mar indecifrável que é o ser humano. Sem dúvida, trata-se de uma empreitada perigosa, pois quando mergulhamos no desconhecido, nunca sabemos ao certo o que iremos encontrar. Em contrapartida, o mergulho se faz necessário para que saibamos que, por maior que seja o nosso desejo de compreender e dar sentido exato à existência, algum pedaço de vida - justamente o que chamamos de mistério - sempre nos escapará.


Foi com o intuito de preservar o que há de mais misterioso dentro e fora do homem, que aceitei o convite e abracei carinhosamente este projeto, consciente de minha responsabilidade - eu, até então uma autora inédita, estaria, de fato, diante de grandes artistas! De um lado, Pedro Oliveira: o Diretor maravilhosamente visceral. Do outro, a minha palavra - que até então havia sido dedicada somente à literatura - na voz e no corpo da 1ª Dama do Teatro Pernambucano: Geninha da Rosa Borges.


"E ASSIM CAMINHA A TERCEIRA IDADE..." poderia ter sido escrito por qualquer um de nós, pois tratando-se do último suspiro de vida de uma mulher comum, e tendo como argumento um dos mais formidáveis poemas de Charles Chaplin, é um espetáculo que revela o sentimento universal - embora deixe claro que cada vida é uma experiência única - e que pretende resgatar a humanidade perdida dentro de nós.


(Amanda Moraes)



PRLM de Melo Produções apresenta:


Geninha da Rosa Borges em

"E ASSIM CAMINHA A TERCEIRA IDADE..."


Direção: Pedro Oliveira

Texto: Amanda Moraes


Dia 22 de setembro de 2009,

no Teatro de Santa Isabel,

às 21h.


Confira no youtube Geninha da Rosa Borges no Programa do Jô. Atriz fala de sua carreira e de seu novo espetáculo.

domingo, agosto 16, 2009

O Roedor

Você, solto dentro de mim,
feito um bicho.
Você me roendo a cor dos olhos,
sim, e também os mamilos
- o leite azedo que jorra dos mamilos.

Você me roendo a música clássica
que o coração executa.

Você roendo os ruídos da minha festa,
a fogueira na qual me ardo,
a lama nos meus sapatos,
o meu beijo de morte.

Roendo também a minha sorte.

Você me roendo o cetim da roupa,
os dias sangrentos, as noites úmidas,
a triste espera por um milagre,
o pão, a poesia, os homens, o Deus.

A sua língua roendo a minha linguagem,

os dentes afiados do meu cão,
minha sombra, meu pecado, minha redenção,
você roendo você - que também é parte minha.

Feito um bicho que rói
e também ilumina,
você vai me roendo
e vai me iluminando:

tornando cheio o vazio que fica
- dando à minha miséria
a grandeza de se saber miserável.

quinta-feira, julho 16, 2009

A Bruxa

Impuseram-me a fogueira:
Disseram-me suja, sombria, feiticeira.

Incendiaram-me o sexo
E eu estou morrendo:
Mas é de vida que eu morro,
Eu sofro mas sofro ardendo!

No fogo sofre, morre e arde
A mulher que não é covarde;
A mulher que não inventa o espírito
Para justificar a carne.

domingo, junho 14, 2009

CARTA AO FUTURO AMANTE

Recife, treze de junho de 1989
Querido Outro,


Ontem à noite, pouco antes de adormecer, eu construí um castelo. Um castelo azul, ou vermelho, ou cor-de-castelo mesmo – já não sei bem. Um altíssimo castelo, iluminado, lindo, onde viveremos amando e, do mais ardente amor, morreremos: com o sangue elegante dos amantes jorrando dos nossos furos, ou feridas, ou sussurros –já não sei bem. O meu único medo era o de porventura sermos descobertos em nossa liberdade, por isso, cuidadosamente, tratei de construir um castelo oculto; solto dentro da noite secreta; perdido na mata inviolável do ser. Um castelo selvagem, cuja porta nos devorará até que nós devoraremos não somente as portas, mas também janelas e paredes e vidraças – nós: famintos e ávidos de mais amor, Querido, já pensou? Dentro desse Novo Mundo – a que prefiro, carinhosamente, chamar de castelo – dentro desse Novo Mundo, nós correremos perigo por amar demais e, justamente por amar tanto, também seremos perigosos: fuçando um pouco mais o imaginário, posso nos ver imensos, temidos pela mobília, quadros, escadarias, tudo. E nós, tomados pelo habitual sadismo dos amantes, debocharemos da vida, equilibristas, vagabundos, animais. Eu serei a mulherzinha: nua, fértil, liberta; você será o macho: silencioso, peludo, feroz – nós dois, juntos, seremos uma única criatura úmida, enquanto o sentimento, essa força maior, será o nosso criador. Às vezes nos possuirá, de súbito, aquela vontade natural de destruir tudo e pôr à baixo o castelo, mas não faz mal: resistiremos heroicamente, e aproveitaremos a fúria para nos atirar um contra o outro, ou entrar um no outro, ou morar um no outro – já não sei bem. Aos domingos, sairemos para brincar no jardim: você dará um jeito qualquer de adivinhar o meu estado de espírito e enfiará uma florzinha murcha entre os meus cabelos; nós chuparemos frutas cítricas até que não lhes sobre nem mesmo o caroço; cavalgaremos leões, ou onças, ou nós mesmos. Viveremos dentro da célula-mãe das coisas, seremos matéria-prima. Querido, acredite: com essas mãos de velha e esse fôlego cansado – a partir dessa fina matéria de vida que me resta – eu construí um castelo! Um castelo, ou um edifício, ou mesmo uma modesta casinha – já não sei bem. O que eu sei é que, apaixonadamente, ergui paredes e construí a nossa morada. Agora só me resta construir você, Querido.