quinta-feira, abril 30, 2009

Amor

Eu, muda e estática, assistia - em transe de amor - um dos maiores deslumbramentos de toda a minha juventude: o vento da manhã balançando com violência a folhagem do pé-de-alguma-coisa que havia na casa dos meus avós.

O pé era verdinho-verdinho, e tinha pouco mais de um metro e meio de altura. O caminho que o vento fazia até chegar e bater com força nele, eu não sei; mas sei que quando, enfim, chegava, o meu coração se enchia de uma liberdade esquisita; liberdade cujo maior desejo era o de escravizar os sentidos da gente. Quanto mais livre eu estava - em assistir o vento espancando a folhagem -, mais aprisionada a esse acontecimento eu permanecia: havia liberdade mas não havia libertação.

Era domingo - eu lembro - e jamais houvera tamanha doçura em meu corpo quanto naquele domingo ventilado. Pensando bem, fuçando com coragem e profundidade minha memória emotiva, não era propriamente a doçura o que residia em mim, e, sim, um amontoado de diferentes alegrias, uma por cima da outra - assim mesmo bagunçado. Era uma confusão que, de tão alegre, produzia em minha boca uma saliva adocicada. Eu confesso que não entendia o por quê d'eu estar ali, defronte a planta, paralisada em contemplação; não compreendia o por quê d'eu, repentinamente, insistir em dar tamanha importância àquilo; mas sabia exatamente quanto poder exercia sobre mim aquela descoberta.

De fato, o meu corpo estava sem ação. Nada funcionava direito - pernas quietinhas, braços parados entre as coxas, olhos que não piscavam. Mas, lá dentro do meu íntimo, no lugar que pode-se chamar também de "entranhas", o mundo estava em festa: escandalosamente, havia o reboliço de alma. Eu inspirava fundo e expirava largo, numa espécie de meditação (alguém que me visse naquele momento na certa pensaria que eu estava tomada por uma calmaria santa, mas a verdade é que eu me aproximava, cada vez mais, de ser a velha do asilo: por fora, a sanidade; por dentro, o delírio)...

...E amor: também era o que eu sentia. Um amor profundo e absoluto pelos ventos, pelas plantas, por mim. Sim, amor por mim e sobretudo pela vida que me foi dada, e a certeza inconsciente de sua existência. Éramos todos amantes: o vento amava as plantas e nelas tocava com força como forma de demonstrar o afeto; as plantas amavam o vento e por ele bailavam em frenesi. Eu talvez amasse aquilo tudo enquanto aquilo tudo me amava e revelava em mim uma beleza até então desconhecida. Tudo era misteriosamente belo e eu tinha a sensação de estar presenciando a natureza comungando com a natureza.

Eu, muda e estática, via um homem. De fato, o meu corpo estava sem ação. Dentro de mim, uma confusão que, de tão alegre, produzia em minha boca uma saliva adocicada. Amor: era o que eu sentia. Amor por mim e sobretudo pela vida que me foi dada, e a certeza inconsciente de sua existência. Eu me aproximava, cada vez mais, de ser a velha do asilo: por fora, a sanidade; por dentro, o delírio. Havia liberdade mas não havia libertação; uma liberdade esquisita cujo maior desejo era o de escravizar os sentidos da gente. Tudo era misteriosamente belo e eu tinha a sensação de estar presenciando a natureza comungando com a natureza. Eu confesso que não entendia o por quê d'eu estar ali, defronte ao homem, paralisada em contemplação; não compreendia o por quê d'eu, repentinamente, insistir em dar tamanha importância àquilo; mas sabia - e sempre soubera - reconhecer um grande acontecimento.

Engraçado: de repente lembrei-me de um domingo na casa dos meus avós...

sexta-feira, abril 24, 2009

A Descoberta

Pare de sorrir, por favor. Eu odeio quando você sorri - o seu semblante vulgariza-se e tudo fica esteticamente feio (sua boca, quando alegre, amarga); seu corpo todo se balança, sua barriga tambem gargalha, você entra em um transe patético que casa perfeitamente com o balé esquisito que os seus pés emendam; o som da sua risada me dá nos nervos (apesar de genuinamente feliz, eu sei, a música que você canta quando ri soa forçada). Eu tenho vontade de vomitar quando penso nas roupas que você veste, nos sapatos que você calça, nos assessórios que você usa: tudo que compõe a sua imagem me deixa paralisada de tanto ódio. Eu te odeio com tanta força, que seria em vão a tentativa de qualquer movimento contrário - o ódio transcende a minha própria existência (o ódio é o meu filho indesejado que alimenta-se do meu espírito, vai ficando bruto até o dia de sua explosão. Parido, ele cresce e torna-se imenso, atingindo involuntariamente o além-mim. Fica maior que eu, meu odiozinho, ganha vida própria, independe das minhas vontades mas... mas ainda é meu). Enquanto os poetas tecem, com muito cuidado, a palavra que dará corpo a sua louca paixão, eu não - eu derramo sobre o papel o que há de pior em mim; eu sujo a vida de ódio mortal. E por você, confesso, não sei sentir outra coisa que não este sórdido sentimento de uma baixeza quase sádica. Eu sou cuel porque te odeio, ou te odeio porque sou cruel? Já não sei mais onde começa e onde termina a minha antipatia por você, pois quando te vejo caminhar tranquilo, bocejando - como se tivesse demasiada fé no futuro -, eu me desorganizo toda e os meus pedaços se espalham sobre a calçada e eu me transformo em pura sucata de natureza indesejável. Quando eu te vejo, eu sou O Monstro, pois te odeio verdadeiramente; pois sinto absurda necessidade de te mastigar e te engolir todo, como nas histórias de fantasia. Sinto vontade de comer o seu ser para que você não tenha mais existência; para que você morra; para que você não habite mais o mesmo espaço que eu e para que não provoque mais em mim essa ânsia de vômito horrível; essa indigestão fatal. São sete e meia da manhã e você já vem fechar a janela e me dizer "boa noite" com aquela voz grossa de homem maduro e aquele jeito ridículo de quem tudo sabe sobre a vida. Cá pra nós: eu nunca entendi como essa sua calmaria de entidade espiritual consegue ser tão detestável. Você chega e me diz algo como "tenha calma", e não percebe que é justamente a minha inquietação que me dá forças para continuar, enquanto você fica tão pequeno e mole e líquido e a sua vida toda se resume em ser apenas aquele vazamento incômodo na cozinha. Eu te odeio sem saber muito a respeito do ódio, sem o menor conhecimento acadêmico sobre o assunto: em minhas entranhas ele nasce inconsciente do seu poder, como nasce, inconsciente de sua beleza, uma florzinha. E em mim, a cada vez que te imagino, ele cresce alguns centímetros, com a liberdade de crescer infinitamente, mas negrinho-negrinho, escravizado por ele mesmo. O meu ódio por você é o meu veneno, e, um dia - eu sei - um dia eu hei de morrer envenenada de mim. Às vezes eu paro durante longos instantes e observo esse vão que existe entre eu e você, esse bolo quase sólido que se chama mistério... Então, suada e exausta, eu me submeto à mais estranha das descobertas: há o ódio porque há o amor.

domingo, abril 12, 2009

Vocês (Urina e Mel)

Com esse seu jeitinho manso, você vai pouco a pouco esboçando a sua mais escura violência, não é? Talvez seja a doçura de seus modos um truque para alcançar a glória de viver amargamente. É tão misteriosa a forma com a qual sua natureza se dá, como se a você tivesse sido entregue o poder da labuta sem dor. Ou da dor sem labuta – já não sei mais. O fato é que eu vejo você trabalhando arduamente dentro de si – os braços d’alma preparando, com muitíssimo esforço, as terras para o plantio. Ao invés de ingênuo, eu diria que você é um homenzinho malicioso, às vezes até cruel. Ao invés de malicioso, eu diria que você é um homenzinho absurdamente ingênuo, também às vezes até cruel. De qualquer forma, no final das contas, o que, com força, sobrevive em você é somente a crueldade. Você não é mau... mas, enquanto os outros escondem debaixo da língua a miséria que salivam – sim, todos salivam miséria -, você cospe tudo numa taça de cristal, exibe o líquido com orgulho e depois bebe! bebe até a última gota, e isso é ser cruel, pois é feito de uma felicidade ordinária. Por sinal... você tem mania de engolir as coisas até a última gota, não é? Eu percebo: quando você está tomando café às cinco e quarenta e cinco da tarde, por exemplo, não há sossego enquanto não sentir a derradeira gotícula descendo goela abaixo. É como se a vida para você só tivesse valor dentro da morte das coisas. Veja só: não é na morte do café que o seu coração se enche de alegria? Pois bem, é exatamente no fim de tudo que o seu espírito encontra a paz. Para que uma porção de coisas dentro de você inflame de tanta vida – eu percebo –, é necessário que a morte abrace uma porção de outras coisas. Não falo apenas do café, mas também de mim: você também me absorve até a última gota. Para ser mais exata, é o meu túmulo o lugar do seu nascimento. Às vezes eu fico pensando como deve ser cansativa a existência de alguém assim como você, mas depois eu chego a conclusão de que, como não há mal que não se transfigure em bem à uma hora qualquer, qualquer hora dessas você estourará no ar de tanta alegria. Uma alegria súbita, como um susto, mas ainda assim uma alegria, com todas as tonturas que a alegria oferece. Existem muitos de você, eu sei. E você, você, você... você é um bicho selvagem solto na cidade grande. Seu lugar é o caos: é dentro do caos que você se organiza; que você ergue a sua morada. Dentro dessa desordem, você não existe dessa ou daquela maneira... a confusão à você entregaram de forma bruta e, dentro dessa desordem, você simplesmente existe. Eu não ousaria jamais escrever sobre você – eu escrevo você, assim mesmo sem exatidão... apenas co'a liberdade necessária para escrever alguém que traz nas veias urina e mel.




Para Ângelo.


Foto por Jedson Nobre (Dedao)
Ângelo Fábio em "A Moça de Nove Dedos e A Moral Libertina".

quarta-feira, abril 08, 2009


A falta daquilo que chamam de “inspiração” me atordoa. Estou seca. Sinto que me aproximo terrivelmente da morte. Uma morte silenciosa mas não menos bruta e dolorida. Estou com medo dessa velhice precoce, desse delírio impiedoso que é envelhecer o espírito, aos vinte anos de idade, e murchar, murchar, murchar e ir murchando até desaparecer misteriosamente no espaço. Quando não escrevo, minhas mãos ficam engelhadas e pálidas e finas, como uma folha de papel-enrugado. Mal posso usá-las : o mundo e suas coisas me escapam. Meu corpo pesa, talvez seja o peso de uma vida inteira de mistérios, mas isso pouco importa: o fato é que me arrasto feito um bicho sujo pela casa, para lá e para cá, sem saber aonde chegar, o que fazer, que horas são e, sobretudo, quem eu sou. Quando não escrevo, não sei quem sou. Distancio-me da existência que me foi dada, com tanto amor, por Deus. Agarro-me a Ele, mas não adianta – é como se eu ateasse fogo aos documentos que comprovam que, um dia, estive dentro deste mundo delicioso, ardendo e chorando de espanto: bolha de sabão estourando no ar de tanta vida. Um dia fui bolha de sabão; agora, com a dura escassez da palavra, sou somente o pó sobre o armário da sala: sem segredo, porém também sem revelação.