sexta-feira, outubro 19, 2007

Náufraga

Quando somos meninas, comemos as nossas próprias entranhas. O alimento sagrado é a flor do sexo: comestível e carnívora - algo como devorar o que nos devora. Ou melhor: devorar-nos com graça. Oh deus, ser menina é como dar valor à matéria e ganhar um presente da tia falida numa linda embalagem - embrulhado, faz com que nossos olhos saltem e cintilem em rodopios, num balé furtacor, mas desempacotado, faz com que conheçamos a desgraça de se saber a verdade. Já fui menina, eu sei. Ser menina é como nascer da própria morte; uma aventura lúdica que tanto pode ter qualquer coisa de saboroso quanto pode ter qualquer coisa de gosto de jiló.
Despetalar-me talvez tenha sido o acontecimento mais interrogativo de minha vida - era uma pressa em crescer que deus me acuda! Uma vontade de penetrar e me perder em labirintos audaciosos. Tudo que era súbito era bom e bonito, mas eu não podia saltar para fora de mim porque o muro era muito alto. Como se minha mãe, sabendo ter parido alguém cruelmente transgressor, aumentasse a quantidade de grades em volta da casa para que eu jamais pudesse fugir (agora, só agora, eu entendo o quanto é difícil para uma pássara soltar seus passarinhos sabendo que o céu fica escuro quando anoitece e os homens são maus). Fugir para mim era pisar a calçada; transgredir para minha mãe era a burrice de dar a cara à tapa.
Mas deixemos de enrolação e cheguemos ao ponto máximo de minha história; ao clímax de minha existência: Numa tarde quente eu menti para minha mãe (coisas de menina católica por formação mas que, embora batizada, recusou a primeira comunhão, machucando os velhos parentes). Eu menti com medo de ser desmascarada mas, cá pra nós, isso jamais me impediu de voar. Eu menti, eu menti, eu menti, EU MENTI. E mentiria tantas vezes se assim me sentisse consertando alguma parte torta na humanidade.
A casa de praia era grande e bonita, tinha as divisórias de vidro e quadros de Frida Kahlo na parede - Mas que coincidência! Frida Kahlo, o símbolo da revolução sexual feminina, assistindo o meu bater de asas, o meu vôo por cinco minutos e em seguida a minha queda dura e fria. A realidade era o bicho que eu repugnava, era a parte indesejável e cruel do meu despetalar-me. Bebi muito, a ponto d'eu conhecer de perto a coragem que a embriaguez nos dá, aquela coragem de poucos, aquela coragem que não se tem e se tem quando se tem 15 anos. Bendita vodca com guaraná.
Os olhos do rapaz, o dono da casa, tinham um brilho esquisito. Um brilho de quem perdeu alguma coisa, ou mesmo nunca encontrou e vive numa eterna e inválida busca, sempre o mesmo vazio. Parecia que ele tinha mandado buscar um verde igualzinho ao verde do mar que dali a gente via, para pôr nos olhos e me impressionar. E eu pensar "Nossa! que maravilha: ele tem o oceano nos olhos". Deus, que dia extremamente tropical! O calor não tinha mais aonde caber, era muito pouco corpo para tanto calor. O rapaz me olhava feroz, um lobo, e eu percebi o que ele estava querendo na hora em que deitamos na grama e ficamos morenos. O beijo dele que não terminava nunca dizia-me encantadores absurdos. Depois as horas em que ele passava me olhando numa mudez espantosa, e eu me fingindo de cega - sempre achei que os cegos, profetas e poetas enxergam mais e melhor que as outras espécies de gente. Da grama para o andar de cima foi um pulo. Quanto céu tinha aquele rapaz que eu muito pouco conhecia, e quanto poder sobre mim exercia o desconhecido. Mas eu sequer imaginava que não tinha escolha quando, já deitados, ele por cima, deixei cair a minha sôfrega flor do sexo em suas mãos de macho audaz.
Eu habitava novas terras, descobria novos caminhos. Eu ouvia um mundo gritar por socorro e tentava ajudar esse mundo doente e velho, sem saber que minha ajuda era, de todas as ajudas, a mais vã. Foi como correr tanto a ponto de cavar buraco na terra e afundar-me toda. Que desperdício. Eu podia sentir uma multidão de mulheres me habitar, uma multidão de Fridas Kahlo fazer seu trabalho em mim. Mas eu não sabia que doía tanto essa tal de revolução.
Esta cópula não representou coisa alguma que não a vontade de ser guerreira e forte. Uma vontade, apenas, pois para ser guerreira e forte, eu não sabia, precisa-se conhecer o mundo como conhecemos o nosso corpo. Assumo: eu colaborei para o mundo continuar velho e preconceituoso, eu lutei contra e ao mesmo tempo contribuí com a glória masculina quando abri portas e janelas, antes do galo cantar, para a falsa paixão. Hoje apenas sei que foi neste dia ácido, de biquíne azul-turqueza, sob um sol medonho, que eu conheci o lado náufrago de se saber mulher.

Um comentário:

Marina Moura disse...

Escandalosamente bom.

Há quem se descubra mulher e queira a meninice. As meninas querem é pular o muro.
E ficamos assim: Umas do lado de fora, outras por dentro.
Eu fico em cima.