quarta-feira, abril 25, 2007

Agnes

não hei de acreditar na morte
sem a vida dela - e suas coisas mortas!
não hei de acreditar na vida
sem a sua morte sempre tão viva.
ela é diúrna e noturna
por isso mesmo sempre disposta
a encher-me de coisa absurda
- cruz às minhas costas.
vai-me ensinando o vôo
e num momento, subto suspiro que dou,
é moça capaz de cortar-me as asas
e chorar meu riso
e gargalhar meu pranto
fina trapezista - o mar que me expulsa é o mesmo que a abraça.
ela é objeto de luz não identificada,
profana e sagrada.
moça virgem, santíssima imaculada
que risca meu corpo
e enche os olhos d'água.
abro as portas do meu coração
para que o aqui dentro seja sua casa
viro O Grande Circo e suplico:
"dá-me a tua beleza!
tu que és amiga íntima da carne
e amada amante da natureza".

segunda-feira, abril 23, 2007

Sociedade Anônima

Esses carros que passam tão aflitos quanto o domingo
Qualquer coisa
Querendo correr
Desejando timidamente alguma coisa de fim trágico
Algo que traga um tremor corajoso de errar sem pudor
O domingo é um bicho que me morde, me arranca, me mastiga e me cospe na cama
E se essa última frase me contradiz? Digo-a?
Digo: hoje é o dia do último atraso onde todo esse medo deita no asfalto enamorando-se das pisadas descuidadas
Não vou me trair
Vou me atrair
E quando tudo isso irá acabar?
Aqui: segunda-feira.



(Amanda Moraes e Glauco César II)

sábado, abril 21, 2007

Morrendo

Se é pra morrer,
quero morrer direito.
Quero morrer cheio de morte,
quero morrer direito.
Morrer cheio de vida
é coisa de gente covarde.
Quero morrer num ato alérgico,
um edema de glote fatal.

Dá-me os teus sentidos:
sentes o pulsar em mim?
Pois é, não quero morrer assim.
Quero morrer quando tudo parar:
os dias, as noites, as festas...
quando tudo parar,
nunca morrer aos poucos.
Quero encher-me de coisa suicida.
Quero morrer até quando forem
morrendo as coisas suicidas.

O ar, o espírito, o paraíso;
que não sobre nada,
quero morrer direito.
Os pássaros, as virgens, o silêncio.
Quero morrer quando até a morte morrer.
Quando tudo morrer,
inclusive o poema.

Morri.

quinta-feira, abril 19, 2007

Clarice Lis No Peito

Suas mãos magras e trêmulas de poeta
seguravam firme a pá de ferro.
E num instante oco do espírito,
cravou em meu peito reto.
Achei-a grosseiramente má
(parecia odiar-me tanto!),
mas aceitei a condição de invadida
e deixei-a fazer seu trabalho.

Foi cavando
com olhos espertos de "agora você vai ver...".
Cavando, cavando, cavando...
Preparando as terras de mim
(talvez planejando alguma vegetação),
co'a boca contemplando
o que estava por descobrir.

E num momento
- lá no fundo do meio do mundo de mim -
senti-a arrancar-me a voz do peito,
sem luva ou proteção,
com a dor sangrando aos litros.
Veio mostrando-me, com o pulsante em mãos:
"- Olhe, querida, aqui está seu coração".

Descobri-me.




Para Clarice Lispector.

terça-feira, abril 17, 2007

O Circo (ou O Dia Em Que Uma Criança Não Foi Seduzida Por Um Palhaço)

Um homem magro de sorriso pintado
abriu as portas do infinito
e disse à minha criança:
- Vem comigo!
Ela não foi.
Prefiro suportar o chão que me pisa
(mas me possui de sonho)
a ter o infinito sorriso do palhaço que me devora
(mas me exorcisa medonho).

segunda-feira, abril 16, 2007

O Erro.

Há alguma coisa errada comigo.
Quando eu me deito, me durmo, me ajeito,
me sonho, me espero, me enfeito, me enfeitiço;
eu me obscuro.
Há alguma coisa errada comigo.
Não sei te dizer que nome tem, por que veio,
se vai voltar. Não sei a idade, a cor da camisa,
se usa sapatos ou me pisa sem pele.
Não ouço sua voz nem tento entender suas sombras.
Apenas não me traio.
E assim eu me entendo, me invento, me recebo, me revelo,
me enfeio e seduzo o belo;
eu me obscuro.
Há alguma coisa errada comigo.
Talvez o erro.

quarta-feira, abril 11, 2007

Íntima doçura

Lambo-te o mel que escorre aos litros!
(Sou mulher de lamber as coisas).
Sem saberes, lambo-te a vida toda
- de sorrisos errantes e andar descontente.
Lambo-te o olhar minucioso
- olhar dos corcundas -,
a falta de ar nos pulmões.
Lambo-te a boca cheia de dentes,
lambo-te a espera d'um amor ardente,
lambo-te os tigres selvagens que são teus cabelos
em caracóis cheios de dedos.
Lambo-te a poesia distraída que deixas cair,
e as florestas de ti estou lambendo...
(Sou mulher de lamber as coisas).
E assim vou vivendo, sedenta,
como quem acredita
no poder das línguas.

Água de beber.

A emoção me acompanha
Amante amiga íntima doçura e compaixão
Sem pontuação
Freio nunca há de ter
Loura aparição do bem-querer
A emoção me empresta ouvidos
E me invade a boca
Arranca-me palavras de poder
Sou velha frouxa murcha gostar de ceder
Ginástica do bem viver
A emoção fabrica um ninho
Alimenta o passarinho
Na árvore de mim
E transforma amor em líquido
Um brinde ao Grandi espírito!
A emoção é água de beber

Camará.



Para Emília Grandi.