domingo, dezembro 28, 2008

Árdua

Põe seu ouvido em meu peito
e escuta:
vivo em função do desejo
e o desejo também é labuta.
Compreenda
quando ouvir pedras, suores, lampejo.
E sorria:
a labuta também é desejo.
Põe seu ouvido em meu peito...
Percebe?
No túmulo onde nasce a dor
renasce a verve.

domingo, dezembro 21, 2008

A Linha do Tempo & O Tempo da Linha

Uma agulha aponta, tensa,
o caminho:
o amor costurando
nosso vestido em linho.

Resta saber se, no futuro,
estaremos
no corpo de hoje,
para caber certinho.

terça-feira, dezembro 16, 2008

De Mulher

A minha fortaleza transforma-se em líqüido e vai-se embora pelo ralo. Ele trouxe para as minhas pernas essa fraqueza de mulher e para a minha vida essa estupidez gostosa de sentir - durante o dia sou sua fruta podre adormecida debaixo d'árvore; durante a noite sou sua fruta ainda azeda de tanta juventude. Meu homem! Encho-me de fôlego e digo - com a voz rasgada em retalhinhos -: "Meu homem"! Como é bom dizer assim que este homem, que traz nas veias urina e mel, é meu. A desgraça ganha outra forma, como se florisse em terra árida. Ele, desajeitado, bebe todo o meu leite, e eu pasto sobre seu lençol. Se a agonia tivesse cor, seria a cor dos meus olhos quando ele bate a porta e vai. Vai para onde? Ñão sei. Sei que cada instante da espera é sagrado, pois é feito de sufocante paixão. Seu bigode chupa meu veneno - seu bigode, não sua boca. Ele não é a boca, os olhos, o corpo dele... ele é o bigode dele, grosso e moreno. Seu bigode chupa, arranca o eu cruel, e depois cospe. Tomo isso como prova de amor, pois ele arranca o pior de mim e depois joga fora, deixando-me tão boa para ele enquanto ele permanece tão mau. Não sei ser outra coisa que não sua frutinha. Não sei desejar outra coisa que não seus beijos ardidos de cebola, suas mãos castigando-me pelo crime que não cometi. Pela manhã, começam a me doer os ossos. Preparo o seu dia como quem prepara o lanche do filho (como eu queria que ele coubesse dentro de mim e dentro de mim ficasse para sempre...) Encosto minha boca na sua, delirando de velhice. À noite não enxugo a testa e, assim, deixo que pinguem todos os suores do desejo: eu desejo a inundação. Antes de dormir, ajeito meu sonho de forma que possa caber dentro do seu. Ele: o homem mais bonito; o lobo traidor; a cruz de outro pendurada no pescoço; a meia-noite de qualquer madrugada. Eu: sua mulherzinha.

Tamanho é o meu prazer ao vê-lo, satisfeito, lambuzar-se da comida que eu - não outrinha, mas eu -, com tanto gosto, preparo.

quinta-feira, dezembro 04, 2008

sobre o tempo líqüido do amor

Agora és somente
a escura e suja sombra do que foste.
Cambaleias,
enquanto eu
- dura flor menstruada -,
muito do que fui ainda sou.
Passaste como passa o passarinho,
tão pobrinho,
sangrando devagar, gota a gota.
Eu sou a guerra que resiste às horas;
eu não sangrei: eu-sangue sempre agora.
Tens apenas
o resto do orvalho na pétala da carne
(o tempo te seca, do teu pranto fica as pedras de sal),
enquanto eu
- eu suo chuva o tempo todo; eu (a)temporal.
Das águas que fomos,
sobrou a lama feita de dor.
Agora é somente
a escura e suja sobra do amor.

segunda-feira, novembro 03, 2008

Amor

Quero escrever como quem lança
tenro olhar sobre a áspera paisagem de dentro
- doce escritura desenhando-se, elástica,
ao redor dos meus lamentos.
À dura poesia darei todo o meu molejo:
frouxo, feminino, suado!
Sobre a carne podre pousarei
o espírito apaixonado.
Quero escrever para ser o instante exato
em que não se está terra,
nem se está alto.
Minha escritura: flecha que se lançou
mas ainda não fincou o alvo.
Sou vôo raso,
vivo entre o chão e o salto,
entre o perdão e o pecado.
Quero escrever para ser florzinha
murcha nas mãos do latifundiário.
Desejo escrever, sobretudo,
para enxergar amor aonde não tem:
palavra como estupro, não importa
- o bem e o mal se confundem,
e tudo isso é amor também.

terça-feira, outubro 28, 2008

A Outra

Eu sangro não porque quero, mas porque o sangue me escapa. São cinco e quarenta e quatro da madrugada - mais dezesseis minutos e a manhã sai do forno. Já posso sentir o seu dulcíssimo cheiro de saúde, o galo abrindo-se todo em dia claro, a vida graciosamente desenhando-se, elástica. Já posso sentir o despertar arrepiado das mocinhas e as inoportunas ereções dos rapazes - a delirante harmonia se concretizando, e eu sangrando. Um calor infernal invade a minha casa e dos meus poros - dos meus poros pinga sangue, não suor. Agora já são cinco e quarenta e cinco da madrugada. Algumas pessoas acordam e, embriagadinhas de sono, derramam leite no lençol; outras ainda vão dormir e, embriagadinhas de gim, derramam café na toalha da mesa - eu, embriagadinha de amor, derramo sangue no sangue que já estava derramado em mim. Vou fumar um cigarro e conversar com Deus, volto em alguns minutos. Voltei. Demorei algumas horas, mas posso explicar: Deus estava muito longe de mim e quanto mais eu falava mais eu O sentia distante. Tive de gritar e mesmo assim não tenho a certeza de que Ele me ouviu. São oito e trinta da manhã e as pessoas vivem. A feira a esta hora deve estar até aqui de gente, as senhoras gordas e felizes comprando o almoço dos seus maridos. Sinto que a esta hora as pessoas vivem talvez o clímax de suas vidas: os homens trabalham, putrificados e corrompidos; as mulheres que não trabalham fora de casa também se corrompem e se putrificam, co'a barriga ardente de tanto fogão. No fundo todos eles sangram, mas eu - eu sei que sangro e sangro até os dentes. Sangro não porque quero, mas porque o sangue me escapa. É assim como forma de expressão: uns sangram palavra; outros sangram som; eu sangro sangue. Simples, não é? Estou toda vermelhinha e líquida, mas não tenho medo das coisas. O medo é de quem não ama, pois quando amamos as coisas, o medo é que tem medo da gente - a gente fica tão forte e cruel, tão infalível. É exatamente assim que estou me sentindo agora: sangrenta e invencível porque amo. Curioso: estou só e não me sinto só. Algo me preenche, algum mistério me adentra o corpo. Quanto mais existo, mais existo de forma completa, mesmo ausente do mundo, mesmo sendo a Estranha Mulher Que Sangra. Opa, pinguei no tapete sem querer. Vou limpar, volto num instante. Voltei. Agora são doze horas da tarde e eu sinto o cheiro da galinha guisada que a vizinha prepara. Imaginem o quanto que essa galinha sofreu e sangrou até chegar bonita e cheirosa na mesa de Dona Carmem. Essa galinha por pouco não foi eu na vida. Três horas da tarde e vocês precisavam ver: Estou quase coagulada. Meu quarto já se transformou em mar, dei-lhe o nome de Maré de Amor. Imaginem: eu, nua, nadando na vermelhidão das águas, águas com gosto de ferrugem, mergulhando, testando a respiração, bailando, leve, pesada, nua, nua, sangrenta. São seis e quinze da noite, os homens voltam do trabalho queixando-se das dores d'alma e nem reparam no cabelo novo de suas mulheres. Coitadas. Coitados. Ligam a televisão, mastigam o pão, bebem o vinho. Eu... eu me mastigo e sangro. As meninas despem-se frente ao espelho e observam seus corpos púberes - algo dentro delas lateja -; os rapazes são um pouco mais brutos - os rapazes se invadem e só há sossego quando há o líquido espesso nas mãos. Meu líquido é sangue que não pára de sangrar. Nove e vinte e sete da noite, as crianças escovam seus dentes e de repente... de repente sangram a gengiva. As mães jogam uma aguinha morna em cima e num instante tudo é como se não tivesse sido. Que mania ordinária as pessoas têm de estancar os líquidos. Eu prefiro deixar que me escapem as secreções, elas são meu grito - que mania ordinária que as pessoas têm de abafar o grito. Ai, agora dói. Meia-noite e os homens fazem aquele amor desajeitado e automático com suas esposas, eles por cima. Meia-noite e quinze: agora eles viram pr'um lado, elas pro outro e dormem cheios de pecado - mas os pecados eles também abafam, como abafam o grito. Meu pecado escorre, sou vida menstruada. Meu pecado é Lúcio. Meia-noite e trinta, Lúcio chegou, vem me beijar a boca. Que dor lá dentro... que coisa engraçada: o beijo de Lúcio dói e me rasga e me exaspera e me enche de amor. Agora vejo que amo e amo verdadeiramente e flamejante. Não sou mais eu, agora sou tudo, sou todas as mulheres do mundo numa só matéria. Neste instante sou de Lúcio, Lúcio é meu e nós dois sangramos juntos debaixo da paixão de Deus, conscientes de que a paixão de Deus é a paixão dos homens. Cinco e quarenta e quatro da madrugada: Lúcio vai embora batendo a porta. Minha barriga sorri e chora, sorri e chora, enquanto a vida me morde e beija. Meu homem foi embora: eu amante. Agora eu não sangro: eu-sangue. Orgulho-me e santifico o que sou, como quem lambe a ferida.

quinta-feira, outubro 23, 2008

Tati, A Ostra.

Eu era pequenina e melancólica, mas parecia-lhes não haver motivo algum que justificasse a minha tristeza. Eu mal deixava escapar um filete salgadinho de lágrima e, bruscamente, já me mandavam engolir o choro. Era um ritual quase religioso, sem que fosse preciso esforço d'alma.

Quando o dia amanhecia nublado, as crianças saíam, todas elas, para brincar de polícia-e-ladrão na área de lazer do condomínio em que morávamos. Sentia-se o cheiro doce da alegria juvenil há quilômetros de distância. Eu pedia em prece que me deixassem ir também, e, ocupados demais com tudo que não fosse minha insignificante presença, respondiam-me: "Aquieta-te, menina, pois vai chover, não estás vendo?", apontando seus gordos dedos para o teto da casa. Eu ficava vermelhinha de raiva e meu coração ficava tão pequeno que podia se perder dentro do meu tórax e ninguém jamais encontrá-lo. Os olhos íam apodrecendo... apodrecendo... e, antes mesmo que se transformassem em líquido, mandavam-me engolir o choro. Então eu fingia diversão para mim mesma: passava as horas que tinha e que não tinha debruçada na janela observando os colegas lá fora e brincando de brincar com eles - eu era o ladrão que havia sido preso.

Não sei por que diabos Deus gostava tanto de mim, pois era justamente nos dias ensolarados que chovia descontroladamente; nos dias nublados, curiosamente, não caía uma gota sequer de chuva - eles permaneciam apenas nublados até que o escuro da noite os cobrisse com seu manto assustador. Eu sentia estranha alegria por isso - tudo bem, eu não saía para brincar; mas eles também não venciam o jogo de adivinhar o céu.

Lembro-me de quando tive uma febre alta e resolveram me levar ao médico. Eu morria de medo de médico. Subi as escadarias daquela clínica tremendo de frio e pavor. Eu era magrinha como o que, e minhas pernas finas de inseto cambaleavam - uma valsa desastrada. Hoje, mulher que sou, penso que se eu voltasse lá após alguns anos, teria me apaixonado pelo Dr. Homem - ele era um dos poucos seres humanos que conseguiam olhar dentro dos olhos de forma profunda e sincera, além de ser o único homem que era homem até no nome. Pois bem, se eu voltasse lá após alguns anos, na certa cairia de amores por ele, mas naquela época, aquele desconfortável e doloroso instante não representava outra coisa que não o mal examinando as minhas fraquezas para em seguida dar o bote certeiro.

Foi preciso que eu fizesse uma série de exames, e eu os fiz. Num deles, o de sangue, diagnosticou-se em mim uma hipertensão. Eu não sabia ao certo do que se tratava, mas sabia que não poderia mais comer os salgadinhos que Maria Moça preparava para mim com tanto capricho. Trancada em meu quarto, eu passava os dias forçando pranto na tentativa infantil de expulsar do meu corpo todo o sal que eu havia consumido ao longo de minha até então curtíssima vida. E quando me mandavam novamente engolir o choro, eu retrucava dizendo que não podia, pois sofria de pressão alta e a lágrima era coisa demasiadamente salgada. Mas terminava por engolir.

Durante toda a infância, a tristeza foi meu crime. Eu sabia que estava, por eles, terminantemente proibida de ser triste. Muitas vezes tive de me esconder atrás da porta ou esperar que todos saíssem de casa para chorar. Quando eu lhes dizia: "Estou triste", eles falavam algo sobre ingratidão, pois eu era uma menina saudável e afortunada e por isso não havia motivo para lamentos. Eles não entendiam que minha tristeza não tinha nome tampouco sobrenome, mas estava tão viva e quente quanto eu. Eu podia pegá-la com as mãos, eu podia brincar com a minha tristeza como se ela fosse uma criança alegre.

Numa manhã de sábado, meu pai morreu. Lembro-me do velório: mamãe, mergulhada em seu desespero, ao tragar um café forte, queimou-se na língua e eu fui buscar um copo com gelo na cozinha; todos estavam lastimáveis, menos eu; obviamente meu estômago estava vão e sem fome, mas triste mesmo eu não estava. Lembro-me de algumas vizinhas e seus comentários provincianos: "A menina ainda não chorou a morte do pai, que menininha mais insensível, que demoniozinho!", e riam discretamente. Agora todos choravam, menos eu. Eu havia me evangelizado tão bem na doutrina da casa, que chorar passou a ser o meu maior pecado. Se por acaso chorasse, punia-me rigorosamente com o que estivesse ao meu alcance.

Mesmo depois de tanto tempo, ainda posso sentir o que havia de agonia em mim. Preciso remexer os meus guardados, repartir-me em cacos de vidro - sim, é um esforço bruto -, mas ainda posso sentir a dor inexplicável e latejante. Na verdade, duas dores me perturbavam: a dor e a dor por não poder sentir a dor. A primeira era o meu abismo e a minha verdade mais íntima; a segunda era o corte profundo e lento no ventre da minha moral, a dor da castração, pois, proibindo-me de ser triste, eles estavam me arrancando um órgão.

A ausência do meu pai não mudou em nada a rotina da casa, muito pelo contrário: o que já estava estabelecido permaneceu sob a condição de regra e o que era maleável tornou-se duro feito pedra. A carne de papai havia desaparecido, mas ele ainda estava lá fantasiado de outra coisa qualquer - mamãe parecia querer dizer a ela mesma que, apesar de morto, ele não havia deixado de existir, e, assim, fazia com que todas as suas ordens fossem, dia a dia, transformando-se em severas leis. Minha mãe necessitava dar continuidade a rigidez do meu pai para não deixar escapar o cheiro da vida se materializando, como um corpo que precisa da circulação do sangue para funcionar. Num penoso trabalho, cavei em minha ingênua cabecinha um buraco e lá plantei a idéia de que eu possuía todos os requisitos necessários para crescer e me tornar uma dama ordinariamente feliz.

Esparramada sobre a cama, na preguiça do domingo, tentei outra vida: num clique estava em outro mundo, mais bonito e mais colorido, o mundo da televisão. Um velho escritor estava sendo entrevistado em um programa qualquer, e falava sobre a relação quase direta do artista com a dor. Um homem de cabelos brancos, voz mansa, calça social: só podia ser alguém realmente sábio. Resolvi prestar atenção. Com um amor exacerbado pelo que dizia, ele encheu a boca e pronunciou a seguinte frase: "Ostra feliz não faz pérola". Primeiramente, fui tomada por uma sensação incrível de êxtase que nasceu nos meus pés gelados e não demorou em se espalhar por todo o corpo. Depois - a dúvida: "Por que será que ostra feliz não faz pérola?... ostra feliz não faz...pérola?". Mergulhei nos livros e iniciei a minha busca pela resposta, a minha pesquisa sobre o mundo desconhecido das ostras - o que, eu ainda não sabia, seria o mais profundo acontecimento da minha larga existência.

"Pérolas são produtos da dor; resultados da entrada de uma substância estranha ou indesejável no interior da ostra, como um parasita ou grão de areia": assim estava escrito nos livros. A pedrinha que enfeitava as senhoras da sociedade, as feiosas amigas de minha mãe, eram na verdade o câncer da ostra - a parte infeliz da história, o desastroso acontecimento da natureza -, e luzia como se fosse coisa macia, como se fosse fruta madura no galho.

Entrei, inconsciente e inocente, com a selvageria de mil cães ferozes, para o caminho mais doce e amargo - recolhi toda a agonia em meu ventre de mãe, pus-lhe laçarote cor-de-rosa e a transformei em palavra. O que antes era difícil, tornou-se cruelmente árduo. Sim, sobrevivi misteriosamente, eu equilibrista, mas a dor - esta doce pantera - a dor me habitava, e eu tornei-a pérola, impedida de torná-la lágrima.

segunda-feira, outubro 06, 2008

A Mosca

Sobrevoo-te instintivamente
- não como um bicho que pede,
mas como um bicho que clama.
Dá-me teu prato de sopa
- não como aquele que cede,
mas como Aquele que ama.
A chuva
o amor converte em lama.
Deseja-me, então,
nesta condição apodrecida
- tu me fizeste suja
posto que me fizeste mendiga.

quarta-feira, setembro 24, 2008

O Estrangeiro

Vou ao centro da cidade
e abraço irmãos
- mas são esses que possuem
a irreversível miséria humana.
Mergulho em copos, corpos, coisas
- os copos vazios,
os corpos magros demais,
as coisas putrificadas.
Cintila a minha dentadura
em truculentos sorrisos
- pobre de quem me vê
e pensa que sou uma adoradora!
Seguro no pêlo dos homens
e lhes beijo a boca
- no entanto sua língua
é coisa pouca.
Eu tenho dentro de mim
um vazio duro, maciço,
como se buraco fosse bolo
de matéria sólida.
Dentro do meu corpo
este corpo estranho
que, em sua rígida permanência,
já é coisa familiar.
Essa ausência
- minha irmã adotiva e única.
Essa desavença
- Mundos os quais habito
e suas línguas que não sei falar.

segunda-feira, setembro 08, 2008

Acidente

Bebo-te como a uma mãe
- És desastre de onde eu tiro
o mais sagrado alimento.
Eu sou tua estupidez,
tua burra flor da idade,
renasces em meu nascimento.
Tu me arrebentas
- Eu, o teu rebento.
E o amor desafia em silêncio
o absurdo do tempo;
e o amor grita mudo,
entre o ser nada e o ser tudo
e, assim, ser violento.

segunda-feira, julho 21, 2008

Atinge o peito

Madalena tinha dezessete anos. Toda manhã, assitia ao nascer do sol debruçada na janela do seu quarto - achava-se profundamente parecida com aquele puríssimo momento feito de brisa, e desejava presenciar todas as auroras possíveis como forma de entrar em contato consigo mesma.
Era bonita como o que, mas não sabia utilizar sua beleza em benefício próprio, por isso não havia tido sequer a experiência do primeiro beijo. Seu corpo era todo feito de matas virgens e, embora intimamente quisesse existir de forma vulgar, não conseguia ser outra coisa na vida que não moça virgem.
Suas coleguinhas do colégio, todas elas, já havia tido relações mais íntimas com garotos e vez ou outra, na aula de Educação Física, cochichavam no seu ouvido os prazeres da carne. Madalena ficava toda embriagadinha.
Um dia, uma de suas colegas lhe contou que a primeira cópula era de uma dor quase insuportável. Cheia de uma coragem que brotou misteriosamente, como Cristo no ventre de Maria, Madalena ergueu a cabeça e foi falar com sua mãe.
- Mãe, é verdade que o primeiro sexo dói na mulher como se alguma coisa estivesse rompendo com tudo?
A mãe balançou a cabeça afirmando e não conseguiu prolongar a conversa - talvez porque no fundo soubesse que a menina, com o passar do tempo, havia de descobrir a fogueira sozinha.
O tempo foi passando e Madalena não conseguia pensar em outra coisa: a vida das pessoas a sua volta era estranhamente habitada por essa coisa selvagem e por ela desconhecida. O mundo era um corpo nu. Na televisão passavam aqueles filmes impróprios aos quais ela havia sido proibida de assistir quando criança - agora sua mãe não tinha mais controle e ela os assistia. No supermercado, ela sempre esbarrava nos anúncios de cerveja aonde louras seminuas insinuavam o mais delirante prazer - da cerveja ela também não havia provado. Tudo parecia existir para deixá-la tão curiosa a ponto de sentir uma leve tontura seguida de cruel azedume na boca.
Dentro de Madalena, as "moças do mundo" eram diferentes das "moças da vida": as do mundo eram basicamente as suas amigas, as atrizes dos seus filmes preferidos e também as tais louras seminuas dos anúncios de cerveja; as da vida, obviamente, eram as prostitutas do centro da cidade. As "moças do mundo" eram bonitas e certamente se casariam e teriam filhos encantadores com bochechas rosadas pedindo mordidinhas. Elas teriam o direito de amar sem que fosse preciso sujar o espírito, e o sexo seria a mais doce recompensa por uma vida tão cheia de beleza. As "moças da vida" eram feias e desajeitadas, sombrias por usarem o sexo de uma forma tão banal. Essas não teriam direito algum, pois no momento em que vendiam seus corpos por preços tão baixos, anulavam sua própria existência. O que Madalena ainda não sabia era que, de dentro para fora, essas duas "espécies" de moça eram realmente bastante diferentes; mas, de fora para dentro - se por acaso passássemos um pente fino nessa história toda - não existem espécies, e sim uma única e misteriosa espécie cuja natureza pode pesar como pesa uma condenação: a mulher.
Uma certa noite, fazia muito frio e muita solidão. Madalena tremia e já não sabia se pelo fato de ter tido sempre pouca resistência a ventos noturnos, ou se pelo fato de ter sido sempre muito sozinha. Aurélia, sua melhor amiga, ligou chamando para uma noite de surpresas em sua casa. Já era tarde, mas "nunca é tarde", pensou Madalena.
À casa de Aurélia, Breno, um amigo ruivo com o qual Madalena estudara desde o jardim da infância, também foi. Tudo estava arquitetado por Aurélia - e Madalena resolveu não reagir ao beijo povoado de alucinações que o menino lhe roubou. O que ela sentiu na hora em que foi beijada foi, inicialmente, repulsa, pois nunca havia tido provas tão concretas de que a língua do outro é realmente coisa tão molhada. Depois esse nojinho natural deu lugar a um sentimento inexplicável e inoportuno chamado desejo. Era como se, no fundo, ela desejasse o brilho sujo das prostituas do centro da cidade.
Sob um beijo interminável, Madalena e Breno entraram quarto adentro. Na cama de solteiro de Aurélia, ela finalmente soube como é se estar ardendo de paixão. Essa menina, que antes era toda feita de delicada manhã, agora rezava baixinho, implorando aos céus um pedacinho qualquer de escuridão na vida.
Na manhã seguinte, ela acordou bem cedo e Breno já havia ído embora. Perguntou a Aurélia se ele havia lhe deixado um rosa, uma carta ou mesmo um recado - nada. Voltou para casa com um nó na garganta. Durante todo o resto do dia, sentiu dores horríveis. Dores latejantes. Queixou-se várias vezes dessas dores e por não encontrar outra saída teve de ir ao médico com sua mãe. O médico era uma médica, sorte sua, pois do contrário, teria além de tudo monstruosas cóleras por causa da vergonha. Mesmo depois do sexo ela ainda sentia vergonha dos homens.
- Madalena, explique a médica exatamente o que você está sentindo... - disse a mãe.
- Doutora, eu não sei... é uma espécie de... de dor que passeia.
A médica olhou firmemente nos olhos dela.
- Dor que passeia como, minha querida?
- Não sei explicar direito... é como se fosse um peso, um peso enorme que começa nos órgãos genitais, sobe pela barriga, atinge o peito. Demora um bocado no peito e depois sai, vai para a cabeça. Depois da cabeça, faz o caminho de volta, demorando no peito e finalmente chegando aos órgão genitais.
- Madalena, você tem feito muito esforço física esses dias?
Madalena tinha que contar o que havia acontecido na noite anterior, pois estava realmente preocupada e via os olhos atentos de sua mãe implorarem um diagnóstico.
- Doutora, ontem eu fiz amor pela primeira vez. Doeu um pouco mas havia algo maior que a dor pedindo que eu continuasse, entende?
A mãe ficou muda. E a menina prosseguiu:
- Hoje cedo, quando eu acordei, o menino havia ído embora. Perguntei a minha amiga se ele havia deixado algum recadinho para mim, e nada. Voltei para casa bastante confusa e a partir daí as dores começaram a agir. São dores terríveis, doutora.
A médica, já desconfiada do seria, perguntou, apenas para confirmar:
- E essas dores, querida... "passeiam" no músculo?
Madalena pensou durante alguns instantes.
- Não... acho que é dentro.
A médica e a mãe entenderam tudo. Entreolharam-se discretamente e soltaram uma risadinha nervosa.
- Ah, meu amor, não é nada de mais. Vamos embora! - disse a mãe, cinicamente, como se quisesse despistar o ladrão do tesouro.
A médica ficou uns intantes muda, sem saber como agir, e quando mãe e filha já estavam de saída, na porta do consultório, ela disse:
- Madalena, escuta: ser mulher é assim mesmo. Acostuma-te: vai doer sempre.
E Madalena, claro, acostumou-se.

terça-feira, julho 01, 2008

Aurora

Eu simplesmente sou. Dá-me esse direito de ocultar maiores manifestações do ser. Não há essa necessidade de preenchimento em mim, essa brusca busca pela nomeação (exata) do espírito. Deixe-me deitar no limbo, ser coisa sem valiosa história às costas - são inúmeras as vezes em que a cruz de ouro pesa mais que um mundo. E se eu te disser que não desejo ser burrinho de carga?

Um homem não é um homem porque assim se define, e sim porque nasceu homem e não poderia ser outra coisa na vida que não homem. Entendes o que eu quero dizer? Quero dizer que toda transparência tem que se dar de forma naturalmente humana. É como desnudar-se frente ao espelho: enxergar a carne é um exercío natural da alma. Tudo é cíclico demais: o lobo engana a gente, a gente engole o lodo - e o lodo é mar também. O dia vira noite que vira dia e eu, particularmente, amo os passarinhos cantando pela manhã porque a manhã possui a inesgotável ternura que os homens não têm e que suas mãos jamais poderão tocar. É dentro da manhã que eu consigo vislumbrar o filete de arrepio que me falta.

Eu gosto mesmo da doçura permanente que a aurora tem. Pela manhã, não existe nada que seja pedaço de outra coisa qualquer, tudo é manhã na dura paisagem cintilante. Mordendo a aurora, sente-se esse gosto de coisa natural da qual falei e tudo se demora um bocado, contrariando essa equivocada idéia de que o que é realmente bom dura pouco tempo. Ela não dói nem sufoca e pulsa feito músculo no peito - tenho pra mim que a aurora é um coração líquido inundando a nossa morada todos os dias. Ela exala um cheiro inocente e febril, um cheiro de água-benta - a manhã é também o baptismo de todos nós. Um baptismo diferente a cada dia. Através dela podemos ser essa coisa sem nome pela qual eu rogo, pois se o dia renasce, nós também podemos renascer.

Eu simplesmente sou. Não ouso fazer sentido demais, pois acredito que nada nesta vida possa ultrapassar a linha de chegada. Dá-me esse direito de não chegar lá, como todo mundo, dá-me esse direito de não ser isso ou aquilo pois apenas essa idéia me fortalece e me embriaga de felicidade, apenas sobre este tapete minha essência adormece e acorda tranquila, apenas sob o título de 'simplesmente ser' eu consigo carregar tanto sol em mim. Mas se, por acaso, teimares comigo e de nada adiantar o meu tanto esforço na palavra; se, por acaso, necessitares mesmo me definir, defina-me assim: a moça é como a manhã - indefinível.

quinta-feira, junho 05, 2008

Corpo D'água

Terei eu
- Pobre mulherinha líquida -
O direito de morrer ardente
Como morre o mar na praia?
Terei eu este escandaloso acabamento:
Beijando os pés dos meus homens,
O som de minhas ondas como lamento,
Ameaçando de vida meu último suspiro?
Quero o espancamento!
Morrer abraçando cruzes
Fincadas no deslumbramento.
E ser um bicho fêmea:
Pranto e gozo feitos de água,
Qualquer corpo no estado líquido,
O desejo de morrer assim,
Suado e bonito. Assim,
Como, na praia, morre o mar
- Em um galope oblíquo não saber ao certo
se quer morrer ou matar.

quinta-feira, maio 29, 2008

Crime Delicado

Do meu espírito, o veneno
- Chupas não somente a fruta-carne,
Mas também o meu caroço.
Há dura paisagem no que sou
- Florestas densas; denso bosque incolor.
E mesmo a par dos horrores de me ser,
Mergulhas com coragem
Nesta tão somente tua capacidade de me ver.
És assombro para mim. E descoberta:
Reflexo do meu dentro que lateja,
O céu das coisas íntimas
Rasga a lona e lampeja.
Descobrindo-me, tu me matas, como alguém que,
Para decifrar existência, a flor despetala.
E és o único que
- Eu já despetalada; eu suco cítrico -
Enxerga em mim a beleza do que é feio:
Do meu veneno, o espírito.

sexta-feira, maio 23, 2008

A menina e o véu da (in)verdade

Tarde demais: já era como se seu mundo girasse em torno daquele véu. Um véu que escondia, porém revelava muito, como quando alguém cala. Vivia nua, coberta somente por aquele véu transparente - tivera a coragem de poucos, coragem de reconhecer-se como sendo parte fundamental de tudo o que diz respeito a humanidade, e escolhera o véu como instrumento de mostrar ao mundo que era bicho, bicho homem. Ela era matéria de carne e espírito, todos são, mas pouquíssimos - para não dizer nenhum - tiveram essa ânsia de viver e essa imaculada capacidade de desvendar que a existência é realmente indesvendável. Por isso usava o véu, para provar aos seus homens, amigos, parentes que querer decifrar qualquer parte humana é o mesmo que querer extinguir a humanidade - o amor, por exemplo, existe tão longe do nosso entendimento, que criticá-lo seria um ato de extrema burrice.

Ela realmente acreditava nesta forma de viver: expandindo ao máximo seu mundinho medíocre. Ela supunha que tudo o que ela podia tocar era medíocre, pois ela-poder-tocar significava que havia coisas além, intocáveis. E quando se esticava toda e conseguia novamente tocar naquilo que há pouco era intocável, ela, então, tinha a absoluta certeza de que havia sim coisas além, intocáveis. Por isso não suportava que as pessoas andassem com aquele ar ordinariamente feliz, de quem tudo sabe sobre a vida. Não suportava ter de conviver com gente que não se reconhecia bicho, bicho homem. E ainda assim, amava profundamente o outro, com o amor abrangente e inexplicável de quem olha para dentro de si e se ama.

Não é que ela tivesse as respostas para todas as perguntas, muito pelo contrário: ela tinha muitas perguntas e quase nenhuma resposta, como todo mundo. O fato é que ela conseguia enxergar que ter todas as respostas nas mãos é o mesmo que desistir de viver, então não procurava compreender as naturezas, embora reconhecesse que a vontade de se saber a verdade, se é que a verdade existe, é coisa naturalíssima, que também não carece precisão. Pode-se dizer até que ela era a própria pergunta, a pergunta em seu estado mais eufórico para saber a resposta, a resposta que, quando não vinha, fazia com que ela delirasse de uma excêntrica alegria.

Nome, gênero, ordem - para ela tudo isso era a Ditadura Do Ser em seu mais puro estado de cinismo, e entre fazer parte dessa massa ou ser apenas uma expectadora, ela sempre preferiu a segunda opção, já que não lhe foi dado o direito de mudar de mundo cada vez que se sentisse solitária. Afinal, a solidão também é coisa natural do ser humano, e até isso ela sabia compreender e amar. A flor que ela cultivava, flor cujo nome era inexistente, era tão livre, tão livre, que ultrapassava qualquer estado de liberdade. Ela nunca ousou dar-lhe o nome de liberdade porque acreditava que, nomeando, estaria roubando a sua dimensão, como algo que está vazio perde o sentido de vazio quando nomeado - visto que está, sim, cheio de ausência.

Ela era uma moça cruelmente vã, eu diria: veio ao mundo para tornar as coisas menos exatas. E quando alguém lhe perguntava: "Quem é você?", ela apertava os olhos num sorriso e respondia: "Sobre essas questões de ser, não posso dizer muita coisa, embora haja nos instantes de silêncio a possibilidade de adivinhação. Adivinha-me, então: só assim as leis se tornam justas".

domingo, maio 18, 2008

Pedaço de Mim

Defenderei os meus romances até o inevitável instante em que se pronunciará o meu último suspiro. Defenderei sim, pois em meus romances, bebidos sempre até a última gota, tornei-me tão minha, tornei-me tão eu, que, depois de algum tempo, pude perceber que amar profundamente alguém se tornou amar, de uma forma duplamente profunda, a mim mesma. Apaixonar-se é mesmo como se sentir inteira. Quando esta paixão me é recusada - dando-me a impressão de que há, sim, uma parte exilada do corpo -, eu adivinho o segredo: o aleijão é justamente o que torna a existência completa. É assim como a mãe que pariu - Experimentar todas as desgraças do filho, o filho que já não é mais um membro seu, faz dela muito mais mãe do que quando ela o carregava no ventre. Amar é se reconhecer: olhar-se no espelho e enxergar o outro, ou ver no outro o seu reflexo. Todo esse cheiro de loucura que o amor exala é, na verdade, o cheiro do meu dentro borbulhante. Amar é justamente deixar-se borbulhar, deixar-se ser taça de champagne circulando nas mãos dos homens, dos homens maus, com a infinita garantia de que, mesmo sob todas as desventuras, até mesmo quando a morte vier beijar os meus pés, eu continuarei sendo sempre a mulher que ama. Defendendo os meus romances, estarei erguendo a minha própria defesa: os meus romances são o pedaço de mim que eu fantasio de história; o grito sólido de amor pela minha própria pessoa.

domingo, maio 11, 2008

Duo

Paradoxalmete, vou-me construindo, como se eu carregasse em mim peso e leveza, um pouco de patrão e de negrinho. Parte de mim anoitece sóbria, outra parte tem febre e delira - acredito que a vida seja assim mesmo para quem, como eu, mergulha em tudo o que há de natureza humana. Sou sempre duplamente: mulher das cavernas abraçando luzes, senhora das enchentes de vazio, lambendo docemente os rios - sou mulher de lamber as coisas. Um tanto reprimida, outra tanto perdulária. Em meu útero: filhos ardentes; em minha alma: rocha, pedra calcária. E assim, vou-me mostrando, co'a boca orgulhosa pintada de risos e com uma tristeza amarga no olhar: em meu rosto, desenha-se um córrego com duas vertentes: uma boa, outra mar. Tudo me faz sofrer e gozar: a existência, quando não me é rebento, me arrebentar.

domingo, maio 04, 2008

Sou Quando Julieta Desperta

Nada é tão mulher quanto macho sedento em meu interior agora vão. Um dia, fui, deliciosamente, tão dilacerada quanto dilacerante, mas agora, na tentativa diária de poesia, é como se eu vomitasse vácuo; parisse vento. Não sou a substância excêntrica que a feiticeira mistura em seu caldeirão para fazer morrer meninos e meninas: sou exatamente o antídoto; a parte feliz da história; o contraveneno agindo em silêncio. Sou quando Julieta desperta, o amanhecer raso e sóbrio, as garças tranqüilas na beira de um lago. Sou, definitivamente, gravidez psicológica: parto não há. Não há o rebento, não há o rebentar. Até a morte se cansou de mim - eu, que vivo para morrer. A morte não me vem beijar os pés. Eu tento e, embora exista dentro do tentar um instante de esperança em que se tem fé em tudo, não adianta: nada corta, nada treme, nada teme nada, pois não há mais o que temer. Agora é tudo de uma certeza frustrante, como se assim fosse a vida - um simples caminhar pelo parque, sem se perder. Sou peixinho vivendo no aquário pequeno em cima da estante velha da casa da vovó: pedacinho de coisa natural de existência absolutamente decifrável. Não sei mais ser rosa pálida em agonia; não sei ser bicho atropelado, agonizando; não sei ser mãe que perdeu filhos, tampouco sei ser mãe que acabou de ganhar filhos. Não sei ser menina violentada pelo tio, pela moral rígida, pela própria vida. É tudo de uma tranqüilidade quase invisível, de uma felicidade quase mitológica, de uma estabilidade quase irreal. Quero de volta o grito rouco dos poetas, pois hoje tudo o que eu sei ser é pássaro em paz.

quinta-feira, abril 24, 2008

Maligna

Hoje me desnudei frente ao espelho, co'a boca vermelha entreaberta, como quem insiste em esperar qualquer coisa do vácuo. Eu tive a nítida impressão de que dou para o mal. Não o mal benigno, o mal que todo ser-humano necessita possuir, mas o mal de quem tem a nítida impressão de que dá para o mal: o mal de quem furou todos os dedos em pacto com o Demônio. O que eu sou? - perguntei-me - Sou nada além de um bicho solto. Uma vontade quase satânica de contemplar o que é feio - quem dera fosse por exercício de exacerbação, mas não: uma vontade de contemplar o que é rubro, pois ser menina pálida do portão de casa me dá tantas e tantas ânsias de vômito. Hoje me desnudei frente ao espelho e soltei os meus cabelos negros ensaiando o ato de fazer doer. E desejei, fria e intimamente, ser o chicote maltratando a carne de todos os homens de bem.

terça-feira, abril 08, 2008

(In)sanidade

Se somos filhos do desamor - da união incrédula e infiél, onde há somente o desejo dos dentes cravados na carne -, somos filhos da loucura, pois não há maior delírio que o de se entregar sem alma. Se somos filhos do amor - da união de espíritos numa noite medonha de estrelas ardentes no céu-da-boca -, também somos filhos da loucura, pois não há maior delírio que o de abandonar cárceres em nome do vôo e em seguida enjaular-se novamente em novo mundo. Querida, vês? Não há, portanto, quem se salve das alucinações bandidas: qualquer alucinação, ainda que, por vezes, roube os nossos sentidos e incendeie a nossa morada - ainda que nos apunhale pelas costas -, qualquer alucinação nos devora: tanto, tão completamente, que nos resta aceitar a condição de que crescemos em seu útero e em seu útero quente de mãe macia permaneceremos. De uma forma ou de outra, somos mesmo doce fruto d'alguma loucura, como suco escorrendo pelo queixo da menina no instante em que ela morde a ameixa roubada da árvore da vizinha. E é preciso que toda loucura seja honrada - não perdoada, pois não há natureza que necessite perdão.

segunda-feira, março 03, 2008

Oração




Deus, dá-me um corpo oco, um mundo feio, com jeito de desamor. Faça com que nós dois - eu e ele - não sejamos nada além de cócegas nos mamilos e pêlos da nuca em pé. Como eu queria, Deus, não ter esse coração que conversa comigo todas as noites como se fosse gente, e esse peito que, quando não é castigo, é castigado: esse peito que é negrinho no tronco, escravo, chicoteado peito de mulher. Ai, como eu queria, Meu Deus, como eu queria! que tudo fosse casa dos horrores. Que a vida exalasse cheiro de algum carnavalesco sangue sobre pêlos púbicos de amantes-cadáveres. Como eu queria que nós dois - eu e ele - não precisássemos nos esconder da verdadeira paixão, pois paixão não haveria neste mundo feio pelo qual eu rogo, neste mundo que eu queria. Meu Deus, como eu queria ter essa minha escandalosa agonia, típica de quem ama bichos - bochechas rosadas, lindas vontades de suicídio, língua áspera de esperar chupando litros de lágrima no travesseiro - essa minha escandalosa agonia escondida debaixo do tapete, muda, como sujeirinha de pai maquiada: sem grito e sem apelo, sem faxina e sem descoberta. Deus, dá-me essa coisa que eu tenho, essa coisa imensa e inoportuna, de uma outra forma: veste, Deus, amor de desejo, espírito de carne. Carne apenas, nada mais que isso. Amém.



Foto: Bruno Vieira.

segunda-feira, fevereiro 25, 2008

Árida

O meu amor quer me ver pálida. Quer que eu seja mísero pedaço de carne flácida. Quer que eu carregue nos olhos este imenso buraco estranho que apenas a agonia cava. O meu amor quer me ver impregnada de coisa bruta. Quer me ver bruxa na fogueira. Quer me ver puta no centro da cidade - lambendo o veneno que me arde, no berço chupando o dedo, bebendo cólera aos litros. O meu amor é o meu inimigo - beija-me só para me ver sentir o beijo se partir, fecunda-me só para me ver abortar. Ah, o meu amor: de tanta chuva durante a noite, minha terra amanhece infértil; de tanta mão de afeto, minha flor despetala; de tanto jorro masculino, meu gozo é chama de dor. Este amor, que de tanto amor, não é amor mais não - é secura depois da inundação.

segunda-feira, fevereiro 18, 2008

O Monstro

Não sei porque escrevo. Talvez eu escreva porque, para mim, esta poesia - que, por vezes, cheira mal - é a única arma - a espada que me resta - para lutar contra O Monstro. Esse Monstro habita a caverna que eu carrego dentro de mim, é dentro dela que ele permanece: quieto em sua obscuridade, mudo e santo: santo no altar dos sem-deus - feito puta doce escorrendo pelo queixo. Mas às vezes, muitas vezes, O Monstro teima em saltar para fora da caverna, teima em conhecer o mundo, e não percebe o quanto é inadequado para este mundo, e é nesta hora que eu tenho de escrever: palavra como defesa. O Monstro me parece aqueles tios gordos, desajeitados, bobos, que não percebem o quanto estão sendo a-me-a-ça-do-res quando, brincando, pulam em cima do sobrinho pequeno ou da irmã magricela. É cheio de uma inocência quase feminina, quase floral, não tem intenção de machucar, mas isso não o livra de ser pesado, inoportuno e imensamente perigoso. Nos dias em que O Monstro mostra a cara, eu sou menina temendo a escuridão do orfanato, e tudo o que eu tenho é minha poesia, instrumento cortante levado em minhas mãos agora cristãs, nestas mãos que sempre foram infiéis e desacreditadas - agora eu tenho de crer em alguma coisa maior que este buraco que O Monstro me cava no peito. Ah, como era bom o gosto que dava na boca quando Monstro não havia, nem nada. Era uma surra gostosa, um ato alérgico, uma pílula perigosa. Era o nunca vôo, e como era bom o não saber voar. Eu estava mais perto das horas, eu era o ponteiro dos minutos, ali, incrédulo o bastante para fazer passar o tempo e não doer, não arranhar. De repente, chega este grandiosíssimo bicho, de felicidade ordinária, vestindo pêlos feios, todo curioso em relação a vida, e me transformando nesta pobre senhora crente em superioridades e completamente escrava de uma poesia dura que, por vezes, cheira a mofo. Eu, que sempre fui mulherzinha atea, agora tenho de crer em alguma coisa maior que este buraco que O Monstro me cava no peito. Aquele cheiro ímpio que eu exalava - doutrina erguida com força bruta: amor era carne, carne era Deus -, aquele cheiro se perdeu dentro de mim. Aquele amor sem alma - cuspe de um vulcão: amor suado, sólida exacerbação -, aquele amor me destruiu a morada. E hoje está tudo dissipado. Minha paixão, que antes tinha o gosto raro de fazer língua derreter, estourou silenciosamente: o suspiro d'O Monstro é a minha explosão.

terça-feira, fevereiro 12, 2008

Carta ao grande amor

Quando há noites de luas cheias de ti, o meu corpo é filho da mais pura matéria de brisa; é de brisa o meu corpo quando há noites de emoção: eu só sei ser pássaro em paz. Mas foste embora, sempre vais, e é por isso que eu te escrevo - nua e tua -, para que saibas que mesmo longe - n'alguma ilha amarga por roubar tua carne dos meus dentes -, mesmo longe, estás cá dentro dos meus órgãos cálidos. Tu me entregas como presente noturno, dentro de uma caixinha cor-de-rosa, este tipo de miséria: de onde eu chupo o que me alimenta, um gosto de cólera na boca. Desta miséria me faço mísero pedaço de gente, depois ergo-me para além da miséria, em ordem crescente, e renasço.

Quando não há as noites de luas cheias de ti, bebo deste copo cheio de nada. Líquido com sabor de vazio. "Por favor, uma dose de ausência": eu tomo ar. Nestas noites de caverna desabitada, incendeio-me. Sinto-me quase viúva - jovem, sem roupa -, uma viuvinha ardendo e sorrindo, ardendo e chorando sobre a cama, sozinha. "Cadê meu homem? Cadê meu cheiro de agridoce, o meu senhor?". Enquanto tremo, vivo a legítima dor das mulheres que amam. Noite dessas, menstruei dissabor.

Penso que talvez a tua língua volte e tudo seja como se nunca tivesse sido, ou não, penso que talvez tua língua continue molhando os outros mamilos que não os meus, afinal, tu, meu amor, és mesmo um lobo, lobo, lobo. Como eu te odeio nas noites de solidão! Obscuro-me. Quase não me reconheço diante do espelho, fazes com que eu me perca de mim. Deitada, despida de roupas e coberta de medos, eu danço o balé dos desesperados, o corpo é a labareda da alma, e eu te espero, homem, mesmo sabendo que não vais chegar.

O meu amor por ti é assim esta imensa ambiguidade. Não sei se quero sorrir ou lavar o chão de pranto bruto, apenas sei que me encontro em cima de um parapeito, olhando para as vidas lá embaixo e implorando ao meu peito que pare de morrer assim, um pouquinho a cada dia: o desejo de morrer ligeiro para morrer nova e bonita, como ainda sou. Escrevo-te para que vejas o quanto és mau. Escrevo-te para que vejas o quanto és bom, pois mau que és, fazes com que eu seja boa, e não há maior bondade que a de ser mau para que a outra pessoa seja assim boa. Boa, nova e bonita, como ainda sou. Boa, nova, bonita e desesperada.

Nas noites em que não há as tuas várias bocas beijando os meus olhos e cabelos, eu sou órfã. Ou melhor: sou estéril; sou floresta devastada. Lembro-me bem, querido, da noite em que comeste o meu dentro: as entranhas escorrendo pelo teu queixo, as vísceras devoradas friamente: como eras bicho! Aliás, acabo de recordar: comeste a minha fertilidade. Pedacinhos de placenta entre os dentes, útero aos pedaços, ovários, vários. Comeste a minha fertilidade, e desde então, não sei mais ser a mãe de mim.

A tua poltrona está vazia. Quando voltares - qual bicho de estimação, minha esperança é sempre alimentada - furarei teus olhos. Sim, para que jamais te percas de mim ao enxergar essa tanta vida fora de casa. Desejo ser o teu cão, o cão que te guia e o cão que te segue, o cão que te vive e o cão que te mata. E quando voltares, tudo será diferente, será eu o teu homem quente, o amantíssimo mau e descarado, pois furarei os teus olhos e, na hora do gozo, congelarei teu uivo louco e fecharei as minhas portas para que fiques, para sempre, dentro de mim.

quarta-feira, fevereiro 06, 2008

quarta-feira de cinzas


Era como se eu gozasse pálido, parisse vento, apenas por necessidade de praticar humanidade. Ato alérgico, só para que eu não usasse o colar de contas como instrumento de suicídio. Apenas a vontade de espantar o jejum, porque somos todos bichos, bichos, bichos... Não houve amor. Não houve o desejar-aquilo-que-não-se-tem, tampouco houve o já-se-tem-tudo, já-se-é-repleta. Não houve o ápice, as estrelas ardentes no céu-da-boca, a víbora comendo o tornozelo, as pernas, o sexo, os cabelos..., não houve sequer o leão escondido na barriga, nem a carne flamejante aos pedaços. Não houve os filhos habitando em cambalhotas a pacata vida do ventre: não houve nada pelo qual eu sempre clamei. Se somos todos filhos de um amor breve e suado, não houve o que fizesse pingar, como se eu transpirasse pó. As pessoas me soavam miseráveis, ainda que gostosas em sua miséria, e eu as penetrava devagar na esperança de qualquer arrepio. Eu procurava nestas crianças douradas qualquer susto com o qual eu pudesse viver eternamente, e me era dado em troca flores murchas quase despetaladas: o mundo era um imenso coito interrompido. Misericórdia, cego deus, à estes meninos e meninas que ainda comem esta prostituta coberta de lantejoulas de nome Carnaval. Eu não. Eu como a minha própria placenta.

sábado, janeiro 19, 2008

Entre nós,

a mãe que nunca pariu,
o mar posto em chama.

Eu sou Terra.
Escuta, Céu, a voz de quem ama:

se um dia
eu não puder gerar teu filho,
não reclama:
foi tua chuva que fez
meu ventre virar lama.

segunda-feira, janeiro 14, 2008

?

Nunca saberei me mostrar inteira,
pois sempre tive
a carne flamejante aos pedaços.
Não sou o que sou hoje e soa,
sou hoje o que fui e o que serei
- cintilantes fragmentos de cetim
e boca vermelha rubricada na veia dos homens.
Espalho-me por entre os dedos
da brutalidade da qual me fantasio e,
vez ou outra,
troco de roupa para trocar de beleza,
como alguém que necessita urgentemente
encontrar-se nas profundezas
d'algum mar indecifrável.
Embaçada imagem minha diante do espelho,
distante de mim está minha legítima morada.
Que vestido habito, que anéis?
Que eu fui eu, que eu serei?
Eu... eu sôo pergunta.

sexta-feira, janeiro 11, 2008

Incêndio

Quando estive presa
na torre mais alta
do castelo da bruxa má,
o homenzinho louro
quis, gentilmente,
salvar-me.
Trouxe-me pedras raras,
contou-me suas histórias de valência,
falou-me cor-de-rosa
sobre o mundo desconhecido,
beijou-me a testa cautelosamente.
Fez-se príncipe lindo para mim
- logo para mim que,
não sabia ele,
cultivava o desgosto pelo belo
desde quando se perdeu minha coroa
nas tantas noites,
genuinamente prazerosas,
que tive com o dragão mau e feio,
mas cujas narinas incendiariam o país.