terça-feira, fevereiro 12, 2008

Carta ao grande amor

Quando há noites de luas cheias de ti, o meu corpo é filho da mais pura matéria de brisa; é de brisa o meu corpo quando há noites de emoção: eu só sei ser pássaro em paz. Mas foste embora, sempre vais, e é por isso que eu te escrevo - nua e tua -, para que saibas que mesmo longe - n'alguma ilha amarga por roubar tua carne dos meus dentes -, mesmo longe, estás cá dentro dos meus órgãos cálidos. Tu me entregas como presente noturno, dentro de uma caixinha cor-de-rosa, este tipo de miséria: de onde eu chupo o que me alimenta, um gosto de cólera na boca. Desta miséria me faço mísero pedaço de gente, depois ergo-me para além da miséria, em ordem crescente, e renasço.

Quando não há as noites de luas cheias de ti, bebo deste copo cheio de nada. Líquido com sabor de vazio. "Por favor, uma dose de ausência": eu tomo ar. Nestas noites de caverna desabitada, incendeio-me. Sinto-me quase viúva - jovem, sem roupa -, uma viuvinha ardendo e sorrindo, ardendo e chorando sobre a cama, sozinha. "Cadê meu homem? Cadê meu cheiro de agridoce, o meu senhor?". Enquanto tremo, vivo a legítima dor das mulheres que amam. Noite dessas, menstruei dissabor.

Penso que talvez a tua língua volte e tudo seja como se nunca tivesse sido, ou não, penso que talvez tua língua continue molhando os outros mamilos que não os meus, afinal, tu, meu amor, és mesmo um lobo, lobo, lobo. Como eu te odeio nas noites de solidão! Obscuro-me. Quase não me reconheço diante do espelho, fazes com que eu me perca de mim. Deitada, despida de roupas e coberta de medos, eu danço o balé dos desesperados, o corpo é a labareda da alma, e eu te espero, homem, mesmo sabendo que não vais chegar.

O meu amor por ti é assim esta imensa ambiguidade. Não sei se quero sorrir ou lavar o chão de pranto bruto, apenas sei que me encontro em cima de um parapeito, olhando para as vidas lá embaixo e implorando ao meu peito que pare de morrer assim, um pouquinho a cada dia: o desejo de morrer ligeiro para morrer nova e bonita, como ainda sou. Escrevo-te para que vejas o quanto és mau. Escrevo-te para que vejas o quanto és bom, pois mau que és, fazes com que eu seja boa, e não há maior bondade que a de ser mau para que a outra pessoa seja assim boa. Boa, nova e bonita, como ainda sou. Boa, nova, bonita e desesperada.

Nas noites em que não há as tuas várias bocas beijando os meus olhos e cabelos, eu sou órfã. Ou melhor: sou estéril; sou floresta devastada. Lembro-me bem, querido, da noite em que comeste o meu dentro: as entranhas escorrendo pelo teu queixo, as vísceras devoradas friamente: como eras bicho! Aliás, acabo de recordar: comeste a minha fertilidade. Pedacinhos de placenta entre os dentes, útero aos pedaços, ovários, vários. Comeste a minha fertilidade, e desde então, não sei mais ser a mãe de mim.

A tua poltrona está vazia. Quando voltares - qual bicho de estimação, minha esperança é sempre alimentada - furarei teus olhos. Sim, para que jamais te percas de mim ao enxergar essa tanta vida fora de casa. Desejo ser o teu cão, o cão que te guia e o cão que te segue, o cão que te vive e o cão que te mata. E quando voltares, tudo será diferente, será eu o teu homem quente, o amantíssimo mau e descarado, pois furarei os teus olhos e, na hora do gozo, congelarei teu uivo louco e fecharei as minhas portas para que fiques, para sempre, dentro de mim.

8 comentários:

Marina Moura disse...

O amor, às vezes, é um disparate.

Marina Moura disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Biagio Pecorelli (be.) disse...

e eu agora vou vendo um ritmo, um eco na tua prosa... eu mudei de idéia... acho que você não corta: estoura...

"eu devia ter prendido as suas mãos em meu desejo"... eu disse uma vez. Mas acho melhor furar os olhos, congelar o uivo e fechar as portas mesmo... tens razão.

linda.

Anônimo disse...

"furarei teus olhos. Sim, para que jamais te percas de mim ao enxergar essa tanta vida fora de casa. Desejo ser o teu cão, o cão que te guia e o cão que te segue, o cão que te vive e o cão que te mata."

teu blog: feroz presente de um amigo (Biagio) nessa minha madrugada de cão.

vou compartilhá-lo no meu blog com um link.

bj!

Raphinha disse...

Li, me impressionei.
Reli, me encantei.

Parabéns pelos textos!
Esse, em especial, combina muito com um amigo meu...


Voltarei sempre.

Raphinha disse...

O outro é realmente privado, acredite se quiser, só eu tenho acesso. Digamos que é uma espécie de diário virtual.

Mas muito obrigada por retribuir a visita.

Raphinha disse...

Continuarei te lendo.

Anônimo disse...

é impressionante a intensidade, o sentimento de teus escritos...
é tanto sentimento.
e eu estou aqui... nem sei dizer, e amo essa sensação.