segunda-feira, julho 21, 2008

Atinge o peito

Madalena tinha dezessete anos. Toda manhã, assitia ao nascer do sol debruçada na janela do seu quarto - achava-se profundamente parecida com aquele puríssimo momento feito de brisa, e desejava presenciar todas as auroras possíveis como forma de entrar em contato consigo mesma.
Era bonita como o que, mas não sabia utilizar sua beleza em benefício próprio, por isso não havia tido sequer a experiência do primeiro beijo. Seu corpo era todo feito de matas virgens e, embora intimamente quisesse existir de forma vulgar, não conseguia ser outra coisa na vida que não moça virgem.
Suas coleguinhas do colégio, todas elas, já havia tido relações mais íntimas com garotos e vez ou outra, na aula de Educação Física, cochichavam no seu ouvido os prazeres da carne. Madalena ficava toda embriagadinha.
Um dia, uma de suas colegas lhe contou que a primeira cópula era de uma dor quase insuportável. Cheia de uma coragem que brotou misteriosamente, como Cristo no ventre de Maria, Madalena ergueu a cabeça e foi falar com sua mãe.
- Mãe, é verdade que o primeiro sexo dói na mulher como se alguma coisa estivesse rompendo com tudo?
A mãe balançou a cabeça afirmando e não conseguiu prolongar a conversa - talvez porque no fundo soubesse que a menina, com o passar do tempo, havia de descobrir a fogueira sozinha.
O tempo foi passando e Madalena não conseguia pensar em outra coisa: a vida das pessoas a sua volta era estranhamente habitada por essa coisa selvagem e por ela desconhecida. O mundo era um corpo nu. Na televisão passavam aqueles filmes impróprios aos quais ela havia sido proibida de assistir quando criança - agora sua mãe não tinha mais controle e ela os assistia. No supermercado, ela sempre esbarrava nos anúncios de cerveja aonde louras seminuas insinuavam o mais delirante prazer - da cerveja ela também não havia provado. Tudo parecia existir para deixá-la tão curiosa a ponto de sentir uma leve tontura seguida de cruel azedume na boca.
Dentro de Madalena, as "moças do mundo" eram diferentes das "moças da vida": as do mundo eram basicamente as suas amigas, as atrizes dos seus filmes preferidos e também as tais louras seminuas dos anúncios de cerveja; as da vida, obviamente, eram as prostitutas do centro da cidade. As "moças do mundo" eram bonitas e certamente se casariam e teriam filhos encantadores com bochechas rosadas pedindo mordidinhas. Elas teriam o direito de amar sem que fosse preciso sujar o espírito, e o sexo seria a mais doce recompensa por uma vida tão cheia de beleza. As "moças da vida" eram feias e desajeitadas, sombrias por usarem o sexo de uma forma tão banal. Essas não teriam direito algum, pois no momento em que vendiam seus corpos por preços tão baixos, anulavam sua própria existência. O que Madalena ainda não sabia era que, de dentro para fora, essas duas "espécies" de moça eram realmente bastante diferentes; mas, de fora para dentro - se por acaso passássemos um pente fino nessa história toda - não existem espécies, e sim uma única e misteriosa espécie cuja natureza pode pesar como pesa uma condenação: a mulher.
Uma certa noite, fazia muito frio e muita solidão. Madalena tremia e já não sabia se pelo fato de ter tido sempre pouca resistência a ventos noturnos, ou se pelo fato de ter sido sempre muito sozinha. Aurélia, sua melhor amiga, ligou chamando para uma noite de surpresas em sua casa. Já era tarde, mas "nunca é tarde", pensou Madalena.
À casa de Aurélia, Breno, um amigo ruivo com o qual Madalena estudara desde o jardim da infância, também foi. Tudo estava arquitetado por Aurélia - e Madalena resolveu não reagir ao beijo povoado de alucinações que o menino lhe roubou. O que ela sentiu na hora em que foi beijada foi, inicialmente, repulsa, pois nunca havia tido provas tão concretas de que a língua do outro é realmente coisa tão molhada. Depois esse nojinho natural deu lugar a um sentimento inexplicável e inoportuno chamado desejo. Era como se, no fundo, ela desejasse o brilho sujo das prostituas do centro da cidade.
Sob um beijo interminável, Madalena e Breno entraram quarto adentro. Na cama de solteiro de Aurélia, ela finalmente soube como é se estar ardendo de paixão. Essa menina, que antes era toda feita de delicada manhã, agora rezava baixinho, implorando aos céus um pedacinho qualquer de escuridão na vida.
Na manhã seguinte, ela acordou bem cedo e Breno já havia ído embora. Perguntou a Aurélia se ele havia lhe deixado um rosa, uma carta ou mesmo um recado - nada. Voltou para casa com um nó na garganta. Durante todo o resto do dia, sentiu dores horríveis. Dores latejantes. Queixou-se várias vezes dessas dores e por não encontrar outra saída teve de ir ao médico com sua mãe. O médico era uma médica, sorte sua, pois do contrário, teria além de tudo monstruosas cóleras por causa da vergonha. Mesmo depois do sexo ela ainda sentia vergonha dos homens.
- Madalena, explique a médica exatamente o que você está sentindo... - disse a mãe.
- Doutora, eu não sei... é uma espécie de... de dor que passeia.
A médica olhou firmemente nos olhos dela.
- Dor que passeia como, minha querida?
- Não sei explicar direito... é como se fosse um peso, um peso enorme que começa nos órgãos genitais, sobe pela barriga, atinge o peito. Demora um bocado no peito e depois sai, vai para a cabeça. Depois da cabeça, faz o caminho de volta, demorando no peito e finalmente chegando aos órgão genitais.
- Madalena, você tem feito muito esforço física esses dias?
Madalena tinha que contar o que havia acontecido na noite anterior, pois estava realmente preocupada e via os olhos atentos de sua mãe implorarem um diagnóstico.
- Doutora, ontem eu fiz amor pela primeira vez. Doeu um pouco mas havia algo maior que a dor pedindo que eu continuasse, entende?
A mãe ficou muda. E a menina prosseguiu:
- Hoje cedo, quando eu acordei, o menino havia ído embora. Perguntei a minha amiga se ele havia deixado algum recadinho para mim, e nada. Voltei para casa bastante confusa e a partir daí as dores começaram a agir. São dores terríveis, doutora.
A médica, já desconfiada do seria, perguntou, apenas para confirmar:
- E essas dores, querida... "passeiam" no músculo?
Madalena pensou durante alguns instantes.
- Não... acho que é dentro.
A médica e a mãe entenderam tudo. Entreolharam-se discretamente e soltaram uma risadinha nervosa.
- Ah, meu amor, não é nada de mais. Vamos embora! - disse a mãe, cinicamente, como se quisesse despistar o ladrão do tesouro.
A médica ficou uns intantes muda, sem saber como agir, e quando mãe e filha já estavam de saída, na porta do consultório, ela disse:
- Madalena, escuta: ser mulher é assim mesmo. Acostuma-te: vai doer sempre.
E Madalena, claro, acostumou-se.

11 comentários:

Anônimo disse...

Já te disse que SINCERAMENTE adorei esse conto, Preta?
Adoro Pretas e Madalenas, dores e amores...

Biagio Pecorelli (be.) disse...

contando história né donapretinha?

=)))) fiquei feliz lendo e deu vontade de chorar. A lingua é mesmo coisa demasiado molhada e a dor passeia... e no final, não pude sentir tampouco entender. Um dia vou ser mulher só pra entrar nas tuas palavras.

Peles, novas peles.

beijo grandee

C. disse...

triste.
isso de ser mulher, a gente aprende assim. desaprende, desprende se quiser? não sei ainda. talvez valha a pena tentar...


então conheces biagio? ^^
que lindo isso!

Raphinha disse...

Ando tão sem tempo, mas deu saudade de passar por aqui.

Dores que passeiam... de fato isso é coisa de mulher.

Beijo!

Vanessa de Moraes disse...

Implorando um pedacinho qualquer de escuridão.
Isso é lindo demais.

Fred Delgado disse...

NÃO ENTENDI NADA!

:]

Tô zuando amor, muito bom! Só pra variar.

"Madalena finalmente abriu suas portas e janelas para a paixão." Aqui na minha terra isso tem outro nome. :]

Saudades, linda!

Anônimo disse...

" E Madalena, claro, acostumou-se. "

É como um beco sem saída. O final é igual para todos.

Belíssimo. Parabéns!

( baba )

Bernardo Sampaio disse...

poxa...
valeu pelo comentario que deixaste meu blog. pois é, eu escrevo. ou tento, não sei. fiquei feliz pelo que tu escreveu. é interessante isso.

:)

tua história tá linda. bjos.

No Silêncio das Montanhas a Linguagem dos Ventos disse...

Olá,

Visitando,tragando,degustando,absorvendo...


encantada!

Xerus agudos
Virei mais vezes
Flô

No Silêncio das Montanhas a Linguagem dos Ventos disse...

Sobre esse conto....
Inspiração me deu...(nos deu)



*Para uma língua Virgem*

Uma Língua cheia de corações
poluída de amores insanos
molhada inssurreição
constante abnegação
tua boca porta estandarte do caos
entrada de húmus de hímens de homens
antes,quando era só manhã,
todas as virgens da aurora escondiam
seus decotes mais sutis,
desconhecia-se a dor,
não adentrava-se ainda
nos abrigos mais íntimos
o amor,não tinha libertado as correntes
e a língua,vazia,seca,ansiava as dores
sem nem saber...
Mulheres de buracos distintos
beatas de trajes vencidos
seguiam,rezavam,excitavam...
a língua queria desenhar
viu-se inteira noutra cais
ali,completa,escorrendo pelos cantos o gosto
ali deserta e humanamente possuída
a língua consentiu com o Gôzo.
e quando aquela dor desconhecida
espalhou-se por todo corpo
soube-se Mulher.
para sempre dor?
não,para todo agora
uma língua cheia de corações.


Flô



Xerusss Floridos

C. disse...

cadê mais?