terça-feira, outubro 28, 2008

A Outra

Eu sangro não porque quero, mas porque o sangue me escapa. São cinco e quarenta e quatro da madrugada - mais dezesseis minutos e a manhã sai do forno. Já posso sentir o seu dulcíssimo cheiro de saúde, o galo abrindo-se todo em dia claro, a vida graciosamente desenhando-se, elástica. Já posso sentir o despertar arrepiado das mocinhas e as inoportunas ereções dos rapazes - a delirante harmonia se concretizando, e eu sangrando. Um calor infernal invade a minha casa e dos meus poros - dos meus poros pinga sangue, não suor. Agora já são cinco e quarenta e cinco da madrugada. Algumas pessoas acordam e, embriagadinhas de sono, derramam leite no lençol; outras ainda vão dormir e, embriagadinhas de gim, derramam café na toalha da mesa - eu, embriagadinha de amor, derramo sangue no sangue que já estava derramado em mim. Vou fumar um cigarro e conversar com Deus, volto em alguns minutos. Voltei. Demorei algumas horas, mas posso explicar: Deus estava muito longe de mim e quanto mais eu falava mais eu O sentia distante. Tive de gritar e mesmo assim não tenho a certeza de que Ele me ouviu. São oito e trinta da manhã e as pessoas vivem. A feira a esta hora deve estar até aqui de gente, as senhoras gordas e felizes comprando o almoço dos seus maridos. Sinto que a esta hora as pessoas vivem talvez o clímax de suas vidas: os homens trabalham, putrificados e corrompidos; as mulheres que não trabalham fora de casa também se corrompem e se putrificam, co'a barriga ardente de tanto fogão. No fundo todos eles sangram, mas eu - eu sei que sangro e sangro até os dentes. Sangro não porque quero, mas porque o sangue me escapa. É assim como forma de expressão: uns sangram palavra; outros sangram som; eu sangro sangue. Simples, não é? Estou toda vermelhinha e líquida, mas não tenho medo das coisas. O medo é de quem não ama, pois quando amamos as coisas, o medo é que tem medo da gente - a gente fica tão forte e cruel, tão infalível. É exatamente assim que estou me sentindo agora: sangrenta e invencível porque amo. Curioso: estou só e não me sinto só. Algo me preenche, algum mistério me adentra o corpo. Quanto mais existo, mais existo de forma completa, mesmo ausente do mundo, mesmo sendo a Estranha Mulher Que Sangra. Opa, pinguei no tapete sem querer. Vou limpar, volto num instante. Voltei. Agora são doze horas da tarde e eu sinto o cheiro da galinha guisada que a vizinha prepara. Imaginem o quanto que essa galinha sofreu e sangrou até chegar bonita e cheirosa na mesa de Dona Carmem. Essa galinha por pouco não foi eu na vida. Três horas da tarde e vocês precisavam ver: Estou quase coagulada. Meu quarto já se transformou em mar, dei-lhe o nome de Maré de Amor. Imaginem: eu, nua, nadando na vermelhidão das águas, águas com gosto de ferrugem, mergulhando, testando a respiração, bailando, leve, pesada, nua, nua, sangrenta. São seis e quinze da noite, os homens voltam do trabalho queixando-se das dores d'alma e nem reparam no cabelo novo de suas mulheres. Coitadas. Coitados. Ligam a televisão, mastigam o pão, bebem o vinho. Eu... eu me mastigo e sangro. As meninas despem-se frente ao espelho e observam seus corpos púberes - algo dentro delas lateja -; os rapazes são um pouco mais brutos - os rapazes se invadem e só há sossego quando há o líquido espesso nas mãos. Meu líquido é sangue que não pára de sangrar. Nove e vinte e sete da noite, as crianças escovam seus dentes e de repente... de repente sangram a gengiva. As mães jogam uma aguinha morna em cima e num instante tudo é como se não tivesse sido. Que mania ordinária as pessoas têm de estancar os líquidos. Eu prefiro deixar que me escapem as secreções, elas são meu grito - que mania ordinária que as pessoas têm de abafar o grito. Ai, agora dói. Meia-noite e os homens fazem aquele amor desajeitado e automático com suas esposas, eles por cima. Meia-noite e quinze: agora eles viram pr'um lado, elas pro outro e dormem cheios de pecado - mas os pecados eles também abafam, como abafam o grito. Meu pecado escorre, sou vida menstruada. Meu pecado é Lúcio. Meia-noite e trinta, Lúcio chegou, vem me beijar a boca. Que dor lá dentro... que coisa engraçada: o beijo de Lúcio dói e me rasga e me exaspera e me enche de amor. Agora vejo que amo e amo verdadeiramente e flamejante. Não sou mais eu, agora sou tudo, sou todas as mulheres do mundo numa só matéria. Neste instante sou de Lúcio, Lúcio é meu e nós dois sangramos juntos debaixo da paixão de Deus, conscientes de que a paixão de Deus é a paixão dos homens. Cinco e quarenta e quatro da madrugada: Lúcio vai embora batendo a porta. Minha barriga sorri e chora, sorri e chora, enquanto a vida me morde e beija. Meu homem foi embora: eu amante. Agora eu não sangro: eu-sangue. Orgulho-me e santifico o que sou, como quem lambe a ferida.

Nenhum comentário: