terça-feira, julho 01, 2008

Aurora

Eu simplesmente sou. Dá-me esse direito de ocultar maiores manifestações do ser. Não há essa necessidade de preenchimento em mim, essa brusca busca pela nomeação (exata) do espírito. Deixe-me deitar no limbo, ser coisa sem valiosa história às costas - são inúmeras as vezes em que a cruz de ouro pesa mais que um mundo. E se eu te disser que não desejo ser burrinho de carga?

Um homem não é um homem porque assim se define, e sim porque nasceu homem e não poderia ser outra coisa na vida que não homem. Entendes o que eu quero dizer? Quero dizer que toda transparência tem que se dar de forma naturalmente humana. É como desnudar-se frente ao espelho: enxergar a carne é um exercío natural da alma. Tudo é cíclico demais: o lobo engana a gente, a gente engole o lodo - e o lodo é mar também. O dia vira noite que vira dia e eu, particularmente, amo os passarinhos cantando pela manhã porque a manhã possui a inesgotável ternura que os homens não têm e que suas mãos jamais poderão tocar. É dentro da manhã que eu consigo vislumbrar o filete de arrepio que me falta.

Eu gosto mesmo da doçura permanente que a aurora tem. Pela manhã, não existe nada que seja pedaço de outra coisa qualquer, tudo é manhã na dura paisagem cintilante. Mordendo a aurora, sente-se esse gosto de coisa natural da qual falei e tudo se demora um bocado, contrariando essa equivocada idéia de que o que é realmente bom dura pouco tempo. Ela não dói nem sufoca e pulsa feito músculo no peito - tenho pra mim que a aurora é um coração líquido inundando a nossa morada todos os dias. Ela exala um cheiro inocente e febril, um cheiro de água-benta - a manhã é também o baptismo de todos nós. Um baptismo diferente a cada dia. Através dela podemos ser essa coisa sem nome pela qual eu rogo, pois se o dia renasce, nós também podemos renascer.

Eu simplesmente sou. Não ouso fazer sentido demais, pois acredito que nada nesta vida possa ultrapassar a linha de chegada. Dá-me esse direito de não chegar lá, como todo mundo, dá-me esse direito de não ser isso ou aquilo pois apenas essa idéia me fortalece e me embriaga de felicidade, apenas sobre este tapete minha essência adormece e acorda tranquila, apenas sob o título de 'simplesmente ser' eu consigo carregar tanto sol em mim. Mas se, por acaso, teimares comigo e de nada adiantar o meu tanto esforço na palavra; se, por acaso, necessitares mesmo me definir, defina-me assim: a moça é como a manhã - indefinível.

5 comentários:

Anônimo disse...

Olá! Vim parabeniza-la.Vc escreve muito bem! Aplausos.

Marina Moura disse...

se todas fossem iguais a você...
(as manhãs e as pessoas)

:)

Anônimo disse...

Uau. Com o coração na boca e nos olhos, termino esse texto com aquela vontade de virar a noite só para poder aproveitar de novo esse amanhecer tão pleno que você soube descrever maravilhosamente bem! às vezes a gente esquece que simplesmente é, e esquece que aproveitar as belezas naturais que simplesmente são nos ajuda a encontrar eixo.

Adorei demais seu texto, sua forma de escrever, tudo. Me identifiquei horrores, talvez por isso tenha gostado tanto também. Sem tirar nenhum mérito pelo texto, claro.

Vou dar mais uma passeada pelo seu blog, me encantou.

:*

Vanessa de Moraes disse...

Isso lembra Clarice. Então é coisa boa.

No Silêncio das Montanhas a Linguagem dos Ventos disse...

Procura-se muito as respostas,as tais definições..
o tal fazer:Sentido!batendo continência!(só soldado mesmo)
perde-se as manhãs,perde-se esse cheiro único,perde-se...
pois não há tempo suficiente para isso...corre-se...corre-se!
e ansiamos emoção,encanto,poesia no homem,apenas,
quando é da natureza e pela natureza que eclodimos...
que nascemos e renascemos em essência...
Eu também sou indigente!não há tribo que decodifique minha língua...
Também sinto-me assim cobrada por "SER"na medida que todos os outros fazem sentido...e eu permaneço na manhã...
no meu caso mais especificamente na Lua.
Fazendo todo dia um desenho novo em sua superfície...
e dentro,todos os versos emergindo das indefinições.


Estou adorando tudo que leio!