domingo, abril 12, 2009

Vocês (Urina e Mel)

Com esse seu jeitinho manso, você vai pouco a pouco esboçando a sua mais escura violência, não é? Talvez seja a doçura de seus modos um truque para alcançar a glória de viver amargamente. É tão misteriosa a forma com a qual sua natureza se dá, como se a você tivesse sido entregue o poder da labuta sem dor. Ou da dor sem labuta – já não sei mais. O fato é que eu vejo você trabalhando arduamente dentro de si – os braços d’alma preparando, com muitíssimo esforço, as terras para o plantio. Ao invés de ingênuo, eu diria que você é um homenzinho malicioso, às vezes até cruel. Ao invés de malicioso, eu diria que você é um homenzinho absurdamente ingênuo, também às vezes até cruel. De qualquer forma, no final das contas, o que, com força, sobrevive em você é somente a crueldade. Você não é mau... mas, enquanto os outros escondem debaixo da língua a miséria que salivam – sim, todos salivam miséria -, você cospe tudo numa taça de cristal, exibe o líquido com orgulho e depois bebe! bebe até a última gota, e isso é ser cruel, pois é feito de uma felicidade ordinária. Por sinal... você tem mania de engolir as coisas até a última gota, não é? Eu percebo: quando você está tomando café às cinco e quarenta e cinco da tarde, por exemplo, não há sossego enquanto não sentir a derradeira gotícula descendo goela abaixo. É como se a vida para você só tivesse valor dentro da morte das coisas. Veja só: não é na morte do café que o seu coração se enche de alegria? Pois bem, é exatamente no fim de tudo que o seu espírito encontra a paz. Para que uma porção de coisas dentro de você inflame de tanta vida – eu percebo –, é necessário que a morte abrace uma porção de outras coisas. Não falo apenas do café, mas também de mim: você também me absorve até a última gota. Para ser mais exata, é o meu túmulo o lugar do seu nascimento. Às vezes eu fico pensando como deve ser cansativa a existência de alguém assim como você, mas depois eu chego a conclusão de que, como não há mal que não se transfigure em bem à uma hora qualquer, qualquer hora dessas você estourará no ar de tanta alegria. Uma alegria súbita, como um susto, mas ainda assim uma alegria, com todas as tonturas que a alegria oferece. Existem muitos de você, eu sei. E você, você, você... você é um bicho selvagem solto na cidade grande. Seu lugar é o caos: é dentro do caos que você se organiza; que você ergue a sua morada. Dentro dessa desordem, você não existe dessa ou daquela maneira... a confusão à você entregaram de forma bruta e, dentro dessa desordem, você simplesmente existe. Eu não ousaria jamais escrever sobre você – eu escrevo você, assim mesmo sem exatidão... apenas co'a liberdade necessária para escrever alguém que traz nas veias urina e mel.




Para Ângelo.


Foto por Jedson Nobre (Dedao)
Ângelo Fábio em "A Moça de Nove Dedos e A Moral Libertina".

3 comentários:

O Paroleiro Moderno disse...

Quando é-se o caos...
Louvado seja o rapaz angelo...

Wagner Marques disse...

Que pulso poético!
sinceramente, fiquei surpreendido!

. disse...

sempre quando releio pergunto-me: Seja-me minha própia perdição. eis uma das homenagens mais fortes e pulsantes que pude receber.