quarta-feira, dezembro 06, 2006

O bicho.

O dia amanheceu gostoso. Cíntia era uma criança pálida que havia adormecido ao meu lado sem lembrar da vida. Sonhamos um mesmo sonho sujo, eu e ela, sonho de quem adormece esquecido e acorda pálido num dia gostosamente amanhecido. Aquele quarto tinha um cheiro audacioso de lixo e luxo; cheiro de quem gozou a noite inteira de prazeres obscenos. Eu me negava a transportar para qualquer coisa que transcendesse a carne. Na verdade, eu nunca quis ser mira de cupido morno. Preferia viver pragmático e cético a ter a alma dilacerada. Eu nunca acreditei em sentimentos brutos, e Cíntia era mais uma jovem selvagem que sussurrava frases de efeito no meu ouvido e me ascendia os pêlos.
Mas o dia amanheceu gostoso como nunca havia amanhecido, visto pelos meus olhos ateus, da janela de um hotel cinco estrelas da minha deliciosa Zona Sul. E isso não fez diferença alguma na forma como Cíntia foi olhada por mim aquela manhã, em relação as tantas outras jovens selvagens da minha vida.
As conversas do 'dia seguinte' sempre se desenrolaram muito friamente e eu sempre ignorei o sol lindo das manhãs recifenses. Não por falta de sensibilidade, mas por excesso de medo do bicho feio chamado Amor que povoava o meu inconsciente.
Ficamos deitados, eu e Cíntia, esperando a coragem de desfazer aquela bagunça chegar. Mas ela não chegava, e mesmo assim, eu ía ficando tranqüilo, como se no fundo soubesse que, mais cedo ou mais tarde, alguém chegaria para pôr tudo em seu devido lugar.
De repente, o barulho de alguém batendo à porta. Levantei-me da cama devagar, a preguiça sempre foi minha pior inimiga e sempre esteve presente. Preguiça de deixar a cama, preguiça de andar, preguiça de correr atrás da paixão. Abri a porta como quem carrega uma cruz nas costas, e uma moça, uma arrumadeira, me fitou sorrindo. Com os olhos arregalhados de quem espera reação e a boca frouxa de quem acha graça na vida, ela disse:
- Bom dia, meu nome é Amor.
Ele havia chegado. E, acreditem, não era um bicho tão feio assim.

Nenhum comentário: