segunda-feira, fevereiro 25, 2008

Árida

O meu amor quer me ver pálida. Quer que eu seja mísero pedaço de carne flácida. Quer que eu carregue nos olhos este imenso buraco estranho que apenas a agonia cava. O meu amor quer me ver impregnada de coisa bruta. Quer me ver bruxa na fogueira. Quer me ver puta no centro da cidade - lambendo o veneno que me arde, no berço chupando o dedo, bebendo cólera aos litros. O meu amor é o meu inimigo - beija-me só para me ver sentir o beijo se partir, fecunda-me só para me ver abortar. Ah, o meu amor: de tanta chuva durante a noite, minha terra amanhece infértil; de tanta mão de afeto, minha flor despetala; de tanto jorro masculino, meu gozo é chama de dor. Este amor, que de tanto amor, não é amor mais não - é secura depois da inundação.

segunda-feira, fevereiro 18, 2008

O Monstro

Não sei porque escrevo. Talvez eu escreva porque, para mim, esta poesia - que, por vezes, cheira mal - é a única arma - a espada que me resta - para lutar contra O Monstro. Esse Monstro habita a caverna que eu carrego dentro de mim, é dentro dela que ele permanece: quieto em sua obscuridade, mudo e santo: santo no altar dos sem-deus - feito puta doce escorrendo pelo queixo. Mas às vezes, muitas vezes, O Monstro teima em saltar para fora da caverna, teima em conhecer o mundo, e não percebe o quanto é inadequado para este mundo, e é nesta hora que eu tenho de escrever: palavra como defesa. O Monstro me parece aqueles tios gordos, desajeitados, bobos, que não percebem o quanto estão sendo a-me-a-ça-do-res quando, brincando, pulam em cima do sobrinho pequeno ou da irmã magricela. É cheio de uma inocência quase feminina, quase floral, não tem intenção de machucar, mas isso não o livra de ser pesado, inoportuno e imensamente perigoso. Nos dias em que O Monstro mostra a cara, eu sou menina temendo a escuridão do orfanato, e tudo o que eu tenho é minha poesia, instrumento cortante levado em minhas mãos agora cristãs, nestas mãos que sempre foram infiéis e desacreditadas - agora eu tenho de crer em alguma coisa maior que este buraco que O Monstro me cava no peito. Ah, como era bom o gosto que dava na boca quando Monstro não havia, nem nada. Era uma surra gostosa, um ato alérgico, uma pílula perigosa. Era o nunca vôo, e como era bom o não saber voar. Eu estava mais perto das horas, eu era o ponteiro dos minutos, ali, incrédulo o bastante para fazer passar o tempo e não doer, não arranhar. De repente, chega este grandiosíssimo bicho, de felicidade ordinária, vestindo pêlos feios, todo curioso em relação a vida, e me transformando nesta pobre senhora crente em superioridades e completamente escrava de uma poesia dura que, por vezes, cheira a mofo. Eu, que sempre fui mulherzinha atea, agora tenho de crer em alguma coisa maior que este buraco que O Monstro me cava no peito. Aquele cheiro ímpio que eu exalava - doutrina erguida com força bruta: amor era carne, carne era Deus -, aquele cheiro se perdeu dentro de mim. Aquele amor sem alma - cuspe de um vulcão: amor suado, sólida exacerbação -, aquele amor me destruiu a morada. E hoje está tudo dissipado. Minha paixão, que antes tinha o gosto raro de fazer língua derreter, estourou silenciosamente: o suspiro d'O Monstro é a minha explosão.

terça-feira, fevereiro 12, 2008

Carta ao grande amor

Quando há noites de luas cheias de ti, o meu corpo é filho da mais pura matéria de brisa; é de brisa o meu corpo quando há noites de emoção: eu só sei ser pássaro em paz. Mas foste embora, sempre vais, e é por isso que eu te escrevo - nua e tua -, para que saibas que mesmo longe - n'alguma ilha amarga por roubar tua carne dos meus dentes -, mesmo longe, estás cá dentro dos meus órgãos cálidos. Tu me entregas como presente noturno, dentro de uma caixinha cor-de-rosa, este tipo de miséria: de onde eu chupo o que me alimenta, um gosto de cólera na boca. Desta miséria me faço mísero pedaço de gente, depois ergo-me para além da miséria, em ordem crescente, e renasço.

Quando não há as noites de luas cheias de ti, bebo deste copo cheio de nada. Líquido com sabor de vazio. "Por favor, uma dose de ausência": eu tomo ar. Nestas noites de caverna desabitada, incendeio-me. Sinto-me quase viúva - jovem, sem roupa -, uma viuvinha ardendo e sorrindo, ardendo e chorando sobre a cama, sozinha. "Cadê meu homem? Cadê meu cheiro de agridoce, o meu senhor?". Enquanto tremo, vivo a legítima dor das mulheres que amam. Noite dessas, menstruei dissabor.

Penso que talvez a tua língua volte e tudo seja como se nunca tivesse sido, ou não, penso que talvez tua língua continue molhando os outros mamilos que não os meus, afinal, tu, meu amor, és mesmo um lobo, lobo, lobo. Como eu te odeio nas noites de solidão! Obscuro-me. Quase não me reconheço diante do espelho, fazes com que eu me perca de mim. Deitada, despida de roupas e coberta de medos, eu danço o balé dos desesperados, o corpo é a labareda da alma, e eu te espero, homem, mesmo sabendo que não vais chegar.

O meu amor por ti é assim esta imensa ambiguidade. Não sei se quero sorrir ou lavar o chão de pranto bruto, apenas sei que me encontro em cima de um parapeito, olhando para as vidas lá embaixo e implorando ao meu peito que pare de morrer assim, um pouquinho a cada dia: o desejo de morrer ligeiro para morrer nova e bonita, como ainda sou. Escrevo-te para que vejas o quanto és mau. Escrevo-te para que vejas o quanto és bom, pois mau que és, fazes com que eu seja boa, e não há maior bondade que a de ser mau para que a outra pessoa seja assim boa. Boa, nova e bonita, como ainda sou. Boa, nova, bonita e desesperada.

Nas noites em que não há as tuas várias bocas beijando os meus olhos e cabelos, eu sou órfã. Ou melhor: sou estéril; sou floresta devastada. Lembro-me bem, querido, da noite em que comeste o meu dentro: as entranhas escorrendo pelo teu queixo, as vísceras devoradas friamente: como eras bicho! Aliás, acabo de recordar: comeste a minha fertilidade. Pedacinhos de placenta entre os dentes, útero aos pedaços, ovários, vários. Comeste a minha fertilidade, e desde então, não sei mais ser a mãe de mim.

A tua poltrona está vazia. Quando voltares - qual bicho de estimação, minha esperança é sempre alimentada - furarei teus olhos. Sim, para que jamais te percas de mim ao enxergar essa tanta vida fora de casa. Desejo ser o teu cão, o cão que te guia e o cão que te segue, o cão que te vive e o cão que te mata. E quando voltares, tudo será diferente, será eu o teu homem quente, o amantíssimo mau e descarado, pois furarei os teus olhos e, na hora do gozo, congelarei teu uivo louco e fecharei as minhas portas para que fiques, para sempre, dentro de mim.

quarta-feira, fevereiro 06, 2008

quarta-feira de cinzas


Era como se eu gozasse pálido, parisse vento, apenas por necessidade de praticar humanidade. Ato alérgico, só para que eu não usasse o colar de contas como instrumento de suicídio. Apenas a vontade de espantar o jejum, porque somos todos bichos, bichos, bichos... Não houve amor. Não houve o desejar-aquilo-que-não-se-tem, tampouco houve o já-se-tem-tudo, já-se-é-repleta. Não houve o ápice, as estrelas ardentes no céu-da-boca, a víbora comendo o tornozelo, as pernas, o sexo, os cabelos..., não houve sequer o leão escondido na barriga, nem a carne flamejante aos pedaços. Não houve os filhos habitando em cambalhotas a pacata vida do ventre: não houve nada pelo qual eu sempre clamei. Se somos todos filhos de um amor breve e suado, não houve o que fizesse pingar, como se eu transpirasse pó. As pessoas me soavam miseráveis, ainda que gostosas em sua miséria, e eu as penetrava devagar na esperança de qualquer arrepio. Eu procurava nestas crianças douradas qualquer susto com o qual eu pudesse viver eternamente, e me era dado em troca flores murchas quase despetaladas: o mundo era um imenso coito interrompido. Misericórdia, cego deus, à estes meninos e meninas que ainda comem esta prostituta coberta de lantejoulas de nome Carnaval. Eu não. Eu como a minha própria placenta.