quarta-feira, novembro 28, 2007

Cão Covarde

Só uma força maior que eu para conseguir me fazer voltar ao meio do mundo de mim. Porque eu ando me arrastando pela sala de casa como se tivesse bolhas de chumbo enraizadas em meus pés. Eu me alimento de um cansaço voluptuoso e vermelho, daquele tipo de cansaço que a gente teme e lamenta e chora, mas, no fundo, é tomado por uma linda e loura vontade de contemplação. Um cansaço amante às escondidas. Digo à disposição: "Largarei o cansaço!", digo ao cansaço: "Largarei, para sempre, a disposição", e assim, homem que sou, na medida do possível, vou mantendo as duas: mulher e amante, no ritmo de quem caminha em direção à forca.

Apenas um terceiro sentimento me fará voltar ao mais que humano em mim, pois essa relação ilícita com o cansaço, essas mentiras contadas à disposição não estão me servindo de abrigo. Preciso urgentemente de um útero quente aonde eu me deite macio e não me arraste - muito menos corra! Preciso urgentemente armar o circo e provocar o choque: descobrir-me nu, no centro de tudo, tendo em mãos uma coisa maciça à qual os homens costumam dar o nome de coragem. E esta matéria peluda e rosnenta que tenho agora, o que é? Um cão? Coragem, seu cão covarde!

Preciso muito de um leve tudo: um leve coração pulsante, uma leve casca dolorida, uma leve queda de escada, um leve amor errante, um leve instante de solidão. Preciso muito de um leve momento habitando as cavernas do dissabor - porque nada é mais saboroso que o legítimo dissabor escorrendo pelo canto da boca frutificando o cítrico. Eu não conheço as palavras modernas que têm o poder de transformar as realidades humanas, não conheço sequer o romantismo exacerbado que salta dos olhos em noite de lua-cheia. Por isso, afirmo: preciso muito de um leve ápice de misturas heterogéneas, aonde o sonho e a realidade se fundirão. Preciso de estrelas ardentes no céu-da-boca.

Essa vontade de cultivar o absurdo - o absurdo como música -, deixando de lado qualquer resquício de cansaço e disposição, é o que eu chamo de coragem. Essa coragem - novo sentimento bruto, força maior que eu, que me fará voltar ao meio do mundo de mim - é o que eu chamo de inspiração.

segunda-feira, novembro 26, 2007

Gruta

Encontro-me nas profundezas
d'algum mar indecifrável.
Nem eu me conheço toda:
parte de mim quer alçar vôo,
parte de mim quer pisar firme.
Sou completa n'alguma coisa
que é gruta de mistérios.
E os animais de mim
são todos quase invisíveis.
Sou sempre duplamente
- possuo duas barrigas,
cada qual com seus filhos-segredos.
Anoiteço bruta
e amanheço límpida;
pareço livre e nua,
mas ainda existe em mim
algum centímetro de medo.
Não tentes me enxergar, cheirar, ouvir,
tatear ou provar de meu dulcíssimo mel:
sou toda a dormência dos sentidos dos homens.

sábado, novembro 24, 2007

Eu Viúva

Acaba agora, amor, esta história grandiosamente interessante, de um charme intenso por ter sido sempre a história de um amor aos pedaços. Nosso amor como um cego que requer todos os cuidados do mundo para não cair do precipício - nosso amor que sempre esteve à beira do precipício. Nosso amor como flor pálida exalando cheiro de qualquer coisa bruta - nosso amor que sempre usou da brutalidade dos fracos, órfãos e mendigos, para se proteger do edema de glote que poderia ser fatal. Nosso amor que jogava xadrez por ter nascido com um sopro no coração.

Eu entendo a vida como algo tão quase programado, que seria em vão a tentativa de evitar o fim - o morcego sempre vem chupar o nosso sangue -, porque meu cepticismo não me deixa acreditar que o que dura, dura mais de uma vida. A nossa eternidade e plenitude tinha de ter algum sentido concreto, como quando pegamos a xícara e bebemos qualquer coisa de dentro dela até a última gota, e depois de alguns minutos, percebemo-nos submetidos à uma forte alergia ao líquido. Nós nos submetemos à esta alergia cruel e só agora fomos capazes de parar de beber deste amor - amor acessível e deliciosamente ressacado - amor como cerveja.

As horas vão passando e eu estou ficando com o mal cheiro deste amor-defunto etranhado em minha pele, e me falta a grande coragem de sepultar de vez esta história. Eu não desejo sequer a lembrança desta coisa quase maciça que, um dia, teve vida, embora eu saiba que nos próximos dias, cobrirei-me com um negro véu - tal qual uma viuvinha - e chorarei ajoelhada diante do seu túmulo. Mas isto não é uma carta de despedida, isto é, sem dúvida, uma carta de exorcismo de um sentimento que não pode mais existir - ou dos brevíssimos e suados fatos nos quais esse sentimento se perpetuou em sua árdua existência. Somos todos filhos da existência de um amor breve e suado.

Querido, escuta-te, observa-te, alimenta-te de tua morte, pois é em tua morte que vais renascer, como a segunda tentativa de fecundação de uma mãe que sofreu um aborto. Podes crer, amor: a vida é mística demais em seu cepticismo, e ela nos pregará peças enquanto estivermos respirando. Respira, querido, uma derradeira vez, dentro de mim! Pois a nossa história acaba agora: no instante em que esse pedaço obtuso de coisa mágica se incorpora ao pedaço obscuro de coisa trágica.

terça-feira, novembro 06, 2007

Eclipse

Estou sentindo
uma extraordinária vontade
de me comer,
parte por parte.
Beber-me até a última
gota de sangue;
devorar-me até não restar
sequer a sombra de minhas vísceras
- como um astro some
quando há eclipse. serás
o observador de meu desaparecimento.
Uma vontade não de morte,
mas da fração de tempo que há
entre a vida e a morte,
aquele nada
que não é aborto
nem é fecundação
- como quando o mágico do circo
faz sumir a mulher no caixote.
Quero conhecer de perto
este absurdo que é
devolver-se ao próprio ventre,
como se antes nada existisse
e como se o depois fosse um outro mundo,
longe e inatingível.
Estou sentindo
uma extraordinária vontade
de me tornar miúda, tão miúda,
a ponto de ser aquele pedaço
de coisa imperceptível
- nada de mágico, nada de trágico,
apenas a beleza da não-existência.
Devorar-me tanto, devorar-me tão completamente,
a ponto de me tornar
o meu próprio conteúdo gástrico.
E depois, só depois
- já uma outra mulher -,
vomitar-me toda,
em noite de lua-cheia,
uivando aos homens:
"Cheguei"!