terça-feira, maio 29, 2007

Depressa

Pus o nunca freio em meu automóvel cardíaco,
fui gente,
será isso algum pecado?
Porque tudo passa em veloz subversão:
o tempo, as rosas, as lágrimas das meninas pálidas
do porão.
Tudo passa na velocidade das águas:
as nuvens, as bocas, as mãos sobre os cabelos.
Tudo passa e nada sofre
assim tão dilacerante como eu.
Será Deus capaz de querer tirar-me a pressa,
- sendo Ele o movimento do espírito em todos nós?
Tudo que eu quero é semear minha onipresença.
E contemplar a rosa antes mesmo do seu desabrochar;
arder debaixo de sol medonho
antes mesmo do sol raiar.

Grito: quero o mar revolto;
muitas ondas, nunca desaguar.
Enxurrada de saliva e pranto;
ser a menina atravessando o cântico
do coral da igrejinha.

domingo, maio 27, 2007

Naturalmente

Isso que eu faço
não é poesia,
isso que eu faço
é necessidade macia
que sai urina e fezes.
Isso que eu faço fede.
Isso que eu faço
é criar labirinto
para perder o que eu sinto
e depois encontrar.
Prendo a respiração
para o quase morrer chegar.
Depois solto a respiração
para o quase escrever devorar.

domingo, maio 20, 2007

Limite Feminino

O Tempo, para uma mulher,
é inalcançável.
O Tempo, para uma mulher que sonha,
imperdoável.
Qual Tempo resiste ao tempo?
Apenas o Tempo do querer libertar-se
e entrar jaula adentro
a tempo de não devorar-se.

quinta-feira, maio 17, 2007

Adolescer

Eu quero sair desta cápsula sorridente.
Embora sorridente, é cápsula,
e cápsula sempre aprisiona sorrindo
- é uma forma de enjaular meninas para o nunca vôo.
Deus do céu, quero ser livre!
Quero odiar o Deus do céu com tanta barriga fumegante,
que não caberia em mim.
Quero desacreditar nesse Deus,
cansei de ser a menina cristã carregando a culpa
de sugar os olhos dos machos irriquietos
(irriquietação malvada)
e corromper os homens de bem.

Eu quero sair desta cápsula sorridente
aonde eu me deito em corpos quentes
e destruo minha face pouco a pouco.
Quero o grito rouco,
quero o uivo louco dos bêbados do centro da cidade.
Quero perder as grades, soltar os fios,
amar o vício, e não odiá-lo tremendo.
Cuspir na cara do bandido e me apaixonar pelo inimigo,
sem medo de maltratar as formigas;
quero pisá-las, todas, elas.
Quero provar do inferno,
deixar apodrecer o pão nosso de cada dia.

Eu quero sair desta cápsula sorridente.
Que embora sorridente, é cápsula traiçoeira,
que não vê a hora de afundar-me em poço fundo
- de onde eu nunca mais conseguirei sair!
Deus do céu, quero ser livre!
Virar-me em passarinho
sem ninho, sem casa, até sem asa.
Ser menina sem boneca, sem roupa, sem nada.
Correndo atrás de não sei o quê.
Indo em direção ao não sei onde.
Quero apenas ser mulher,
mulher cheia de útero: isso basta.

segunda-feira, maio 14, 2007

Assombração

Eu tenho medo de você
por causa do seu bigode grosso com jeito-de-tudo-sabe.
Todas as noites, os mesmo pesadelos
me liquefazem:
um gigante bigode grosso com jeito-de-tudo-sabe
tentando entrar em mim
pela boca.
Sou intimamente feminina
e participo do clã das mulheres roucas.
Meu pai diz que eu sou louca,
mas ele não sabe o que é ser uma mulher
de cabelo em pé
assombrada por um bigode grosso com jeito-de-tudo-sabe.
O seu bigode é você
- amigo íntimo da carne!
E o tudo sou eu.
Eu tenho medo de você
porque você é o homem que me sabe.

domingo, maio 13, 2007

Há a bela e há a fera

O homem que eu fito
adormece bruto.
Anoitece impiedoso
derramando sobre mim
seus rios de líqüidos vorazes,
com sua cara de mau
e um jeito de violação.
Como são eternas as noites
em que eu não tenho direito a respiração!
Violenta-me como patrão
castigando a negrinha que sou.

O homem que me fita
acorda macio.
Amanhece cristão
derramando sobre mim
seus rios de água benta,
como sua cara cheia de sol
pedindo perdão.
Como são eternos os dias
em que tudo é religião!
Afaga-me como mãe
protegendo de qualquer absurdo a criança que sou.

À noite, este homem indaga minha carne.
Pergunta-lhe que mulher eu sou;
se eu oferto corpo aos amantes,
se eu me embriago, se eu me dou.
De dia, este homem indaga minha alma.
Também pergunta-lhe que mulher eu sou;
se eu oferto flores aos amantes,
se eu choro, se eu morro de dor.

Profano e sagrado é o meu amor:
este homem timidamente feroz.
Sorrindo, comendo, cuspindo, sofrendo...
Um estupro como uma canção.
Seqüestra-me e depois resgata-me.
E, nos filmes, me faz torcer para que empate
a batalha entre o príncipe e o dragão.